segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Janelas, portas e cartas abertas

HELICÓPTEROS E BEIJA-FLORES

Vejo a abordagem cinematográfica feita pela polícia ao triplex do patrono da Escola de Samba Beija-Flor. Um helicóptero sobrevoa o prédio de luxo, os policiais descem de rapel – e a câmera abre para a piscina onde um lindo beija-flor está pintado sob as águas azulíssismas. Vamos jogar nossos olhos para o obituário de Joãozinho Trinta, n’ “O Globo” de 18/dez/2011: “O carnavalesco que exaltou o luxo passou os últimos dias na pobreza (....), não tinha plano de saúde e ninguém sabia quem ia pagar a conta do Hospital”. Na pobreza? Foi assim que morreu o genial carnavalesco que elevou a Beija-Flor aos píncaros da glória? Façam uma leitura atenta do que expus e chorem suas lágrimas de sangue sobre as águas azuis da tal piscina onde, no fundo dela, adormece pintado um lindo beija-flor. Voltarei ao assunto, noutro tópico. 

CAMERATA BRASILIS

Não, não fui ao recital-lançamento do CD da Camerata Brasilis. Disco belíssimo. Convidado de honra: Nailor Proveta. Que músico fantástico esse Proveta! E participação especial de Aquiles Moraes e Everson Moraes. É desses dois últimos jovens músicos que vos falo agora. Eu os conheci como integrantes do conjunto “Os Matutos”, grupo nascido em Cordeiro e regado com a água de cheiro do conhecimento pelos professores da Escola Portátil de Música.

Há alguns dias o Everson (hoje com 25 anos) me telefonou pra saber se eu tinha alguma coisa do Norato, trombonista fabuloso que há décadas se aposentou como integrante da Orquestra Sinfônica Brasileira. Por “alguma coisa” se entenda foto, partitura, um escrito qualquer. 

Se conto a suncês essas coisas é porque elas tem relação com este saite e com o blog que precisaria ocupá-lo mais vezes com as coisas novidadeiras que se passam no mundo da música, esse mundinho onde existem provetas, noratos, eversons e aquiles. Bem, já vos conto. O susto do trombonista Everson foi grande quando minha tela de TV foi ocupado por aquele músico ebanáceo, num registro que fiz na TVE em 1977. Que grande músico, meu Deus! E que conversa boa, a dele! O deslumbramento se instalou nos olhinhos-faróis de meu querido Everson.

“Informação não se engaveta”, “Informação tem que circular” – esses bordões os fiz ecoarem pelas trompas de Eustáquio  do nosso jovem trombonista.  E lá se foi nosso Everson com uma cópia do vídeo debaixo do braço. E aí a história ganha desdobramentos. Fuça daqui e dali, e eis que o matutinho descobre que, ao contrário do que pensávamos, Norato está vivíssimo. Aos 91 anos, esquecido por essa geração que nunca o ouviu tocar, ei-lo agora fazendo uma espécie de master class na UFRJ, levado pelas mãos jovens e novidadeiras desse menino que nos dá orgulho danado em vê-lo praticando o fazer cultural, levando adiante aquilo que aprendeu. Seu irmão mais novo, Aquiles, é um trompetista que o João de Aquino diz ter “lábios de mel”, tal a beleza de seu sopro. Vamos encontrá-lo, agora, tocando na Sinfônica como um de seus mais jovens integrantes.

Nosso acervo tem essa divina serventia: mostrar os noratos que existem por aí, sob um manto de total invisibilidade, manto que os eversons da vida tratam de descobrir o que era apenas um busto sem placa identificatória na praça da desmemoriada memória musical brasileira.

Obediente ao ditador que ora escreve este relato, Everson gravou a master class. Ficou de me mandar uma cópia. Vou cobrar.

BODAS DE DIAMANTE

Há dias fui às Bodas de Diamante, 60 anos de união de minha única irmã, Gilda, com meu cunhadão Dino Battesini. Sangue italiano, o dele, diferente do nosso: bem caipira, bem Ilha da Jibóia, onde nasceu minha mãe, filha de um violeiro afamado de nome Gregório. Quando havia um desafio nas imediações, minha avó materna tomava uns góros, pegava a viola, fazia um farnel – e lá ia meu avô na canoinha remada por ela, enquanto ele ia “temperando” a viola para o desafio. Que só voltasse vencedor, o que invariavelmente acontecia. Meu pai terá nascido em Rio Bonito, alguns dizem. Outros, pelas bandas de Cabo Frio. Tinha ascendência nobre de judeus portugueses que fugiam das perseguições da época. Nunca perguntei ao velho, quando ele ainda sabia responder as coisas, quem seria o tal Barão de Monte Bello. A prof. Neusa Fernandes ficou de pesquisar isso em Portugual, mas até agora nada! Dino e Gilda me deram sobrinhos, sobrinhos netos. Alguns vieram com o dom da música, outros com apetite de vida e saberes. Puta orgulho tenho dessa garotada. Minha irmã está linda aos 86 anos: mãe, avó, bisavó. Ela e o marido ainda se beijam na boca. Meu sobrinho toca um violão maneiro, vai de Villa-Lobos a Leo Brouwer. Sua filha, Giulia, é cantora e compositora. Que sobrinha-neta talentosa, essa menina. Freqüentou a Oficina de Coisas da – claro! – Escola Portátil de Música, tendo o tio-avô como Oficineiro.

SALVADOR, ALAGADOS, BAHIA

Como o assunto ainda é o nosso saite, transcrevo (para depois comentar) a carta que, com autorização do remetente, divulgo neste espaço:

Querido Hermínio, bom dia. Como você está? Recebeu o jornal dos estudantes de comunicação que te enviei? Olha, escrevo para te agradecer a sua atenção e dizer que agora com essa matéria centenas de pessoas daqui da Bahia, dessa nova geração que é muito desinformada, começam a te conhecer e me empenho nisso porque tenho por você o mesmo respeito que tenho pela Clementina, Drummond, Cartola, Aracy, Mário de Andrade e tantas pessoas importantes para o Brasil e o mundo que aprendi a amar com você. Você é a chave que me fez descobrir dona Zilda, dona Coleta, Emilia Biancardi, Antonio Candido e tanta gente que hoje faz parte de minha vida de uma maneira real. Do mesmo modo você agora é real e presente para os jovens estudantes que são órfãos de conhecimento e de cultura. Peço desculpas pelas mal traçadas linhas da estudante que te escreveu, e, no entanto, estou certo de que a sua disponibilidade em conceder a entrevista que virou o “perfil” está abrindo as portas do entendimento de muita gente jovem da Bahia que vai visitar o teu acervo e trilhar novos caminhos na cultura. Estou à sua disposição. Não fique triste e, meu querido, me responda, pois estou preocupado, pois você é muito importante para mim e não quero e nem quis te trazer nenhum dissabor, somente quero que você e a sua obra sejam conhecidos neste estado onde a cultura está indo ladeira abaixo e isso me dói muito. A Aninha Franco te escreveu e quando vier à Bahia, irás no Teatro XVIII e na República, a casa que Aninha criou no Pelourinho para cuidar da cultura e lá está você e sua obra, o que me fez chorar muito por saber que você é tão bem cuidado por uma Bahia que eu nem sonhava existir. É isso. Meu velho, estou aqui, muitos precisam de você, te peço de me responder para acalentar meu coração que não quer ver meu velho triste, mas sempre reconhecido e amado, porque se hoje eu estou estudando e lutando pela cultura brasileira é porque conheci o senhor, meu querido mestre. Um abraço do Zé Eduardo.

Apresentemos o missivista a você, eventual ledor deste blog: mestre em psicologia e doutor em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia, ele trabalha com projetos sociais na área de Novos Alagados – onde, aliás, nasceu. Autor dos livros “Travessias: a adolescência em Novos Alagados”; “Novos alagados, histórias do povo e do lugar” e do livro que estou lendo agora – “Cuidado como vão, repercussões do homicídio entre jovens da periferia”. Nome completo? José Eduardo Ferreira Santos, mulato que nem o autor destas linhas, e que agora está sendo lido na Itália – porque um livro dele, mais recente, acabou de ser editado por lá. Eu o conheci através dos Irmãos Caverna, Jussiê e Daniel, que foram meus “alunos”(aspeio, porque jamais fui um professor) na Oficina (de Coisas) que ministrei na Escola Portátil de Música.

Enfim, essa cartinha que vaidosamente transcrevi é para dividir com os construtores do nosso saite a repercussão que ele tem junto à gente da Bahia.

DONA ZILDA PAIM, SANTO AMARO DA PURIFICAÇÃO

Acho melhor não dar muitos volteios, e ficar ainda com nosso amigo Zé Eduardo que, aflito, me escreve:

Querido Hermínio, boa tarde. Estive em Santo Amaro e vi que a situação da querida Zilda Paim se complica: sua casa foi assaltada e seu acervo corre risco. Ela tem 92 anos. Entrei em contato com a artista Aninha Franco e vamos ao secretário de cultura. Neste sentido, gostaria de te pedir para atualizar e me enviar assinada a carta que você escreveu sobre ela em 2007. Te agradeço, pois estou me empenhando em cuidar da cultura e de dona Zilda que te manda um beijo – e depois te envio pequeno novo livro dela. Com gratidão, José Eduardo

Vou transcrever um artigo que escrevi há algum tempo (“Um protesto carioca”, sobre essa grande figura que é a Prof. Zilda Paim, há poucos dias citada pelo Caetano (Veloso) em sua coluna dominical n’O Globo:

Me perguntam quem é essa tal de Zilda Paim, a quem dedico o livro sobre Aracy de Almeida que estou lançando agora pela Editora Folha Seca.

Ela é uma estudiosa do folclore, uma professora de quase 90 anos de idade e que deu régua-e-compasso a muito pesquisador que ama as manifestações do recôncavo baiano.

Ela, a Prof. Hildegardes Vianna (já falecida) e a também Prof. Emilia Biancardi, foram peças fundamentais na minha vida. A primeira, todo mundo sabe que, além de pesquisadora emérita, tem um texto fantástico que, volta e meia, me faz pensar no Caymmi – que adora redescobrir o vocabulário bahiano, cujas atipicidades ela domina como uma espécie de Jorge Amado de saias. Emilia, todos sabem, é do “Viva a Bahia”, foi comigo à Europa e  depois seu grupo de bailarinos, cantores a percussionistas (com o saudoso “seu” Negão à frente)  nos acompanhou aos Estados Unidos, numa inesquecível – em  todos os sentidos – excursão que tinha, ainda, uma estreante bahiana, então  jogadora de basquete, hoje a famosa Simone.

Profa. Zilda Paim entrou nessa história numa ida a Santo Amaro, a convite de Bethânia. Ela desejava me apresentar ao Roberto Mendes, compositor santamarense. Queria, acho, nos fazer parceiros. Conseguiu.

Sim, eu já tinha ouvido falar de Dona Zilda, e pedi ao Roberto que me levasse até lá. Fiquei fascinado com o vasto material sobre Santo Amaro que ela coletava e guardava em arquivos toscos. Perguntei: e o que a Senhora vai fazer com tudo isso? “Tacar fogo!”, respondeu a desaforada, só pra me atazanar o espírito. Riu e me explicou que ninguém na cidade dava nenhum valor àquilo.

Selecionei uns artigos, encomendei lá em Santo Amaro mesmo que o digitassem – e recebo esse catatau no Rio e começo a mexer meus pauzinhos. Nessas horas consulto sempre o Roberto Sant’Anna, que eu conheço há décadas. Ele entendeu meu interesse e, para minha surpresa, logo depois recebo pelos Correios um volume com alguns exemplares do livro “Relicário popular” da insigne mestra, livro que ele, belo animador cultural, cavou uma edição na  Secretaria da Cultura e Turismo – isso em 1999.

Quando Dona Canô fez 95 anos, fui lá convocado por Rodrigo e Jota Veloso para me apresentar no belo teatro que erigiram na cidade. Coisa de primeiro mundo. E revi Dona Zilda Paim, agora toda feliz com um memorial que destinaram para ela, enfim, ter todo seu acervo preservado. Era, ainda, uma promessa.

Alegria de pobre dura pouco. Recebo a notícia que, por desarranjos burocráticos que nem consigo atinar quais sejam, tudo voltou à estaca zero. Infelizmente Caymmi não está no Rio, Bethânia está gravando seu DVD e Caetano – cidadão do mundo – anda pelos Estados Unidos, lançando seu disco. Nem tenho com quem reclamar.

Mas aí lembrei que o Gil é agora Ministro, e não sei como ele pode apitar aí nas bandas de Santo Amaro. De qualquer forma, acho que a Profa. Zilda Paim merece homenagens, e não aporrinhações desse tipo a essa altura da vida.

E, afinal, ela é uma espécie de guardiã da cultura de Santo Amaro da Purificação.

E é preciso salvar a terra que deu berço à Tia Ciata e à mãe de João da Bahiana, Tia Prisciliana de Santo Amaro, a Assis Valente e – parece – Silas de Oliveira.   

Artistas da Bahia: vamos à luta!

Hermínio Bello de Carvalho

DONA ZILDA PAIM, CAPITULO II

Gil não é mais Ministro, e Rodrigo Velloso – amigo querido, filho de Dona Canô e irmão mais velho (regula com minha idade, 76 anos) de Bethânia, Caetano, Roberto, Nicinha (há pouco falecida), Mabel – agora é Secretário de Cultura de Santo Amaro da Purificação. Já era, desde nascido. E sem o saber. Porque ama sua Santo Amaro, cuja história conhece a fundo, e é o maior (e único?) animador cultural da cidade. Voz respeitada no clã Veloso, ninguém se meta a besta com ele. O conheci revirando mundos e fundos para realizar projetos para o seu rincão.

Respondi ao meu querido José Eduardo que não saberia fazer com essa guerreira noventenária, a não ser enviar cópia desta carta ao Rodrigo Velloso. Também quanto ao precioso acervo de Dona Zilda Paim, mantenho na íntegra o artigo que está transcrito há alguns parágrafos. Não sei, entretanto, que recursos terá aquela Secretaria para, enfim, dar abrigo condigno a tão grande preciosidade guardada pela Profa. Zilda por tantas e tantas décadas.

Mais não posso fazer. Minha insignificância cultural e artística está, aliás, expressa numa cartinha que recebi de Salvador, de alguém que me solicitou uma entrevista por e-mail, e a dei com a maior boa vontade. Transcrevo um trecho e grifo o que me pareceu um contrasenso:

Primeiramente, muito obrigada pela entrevista, foi um prazer ler tão atenciosas e ricas palavras. Devido ao pouco espaço que temos, optamos por fazer um pequeno perfil de apresentação, já que, infelizmente, grande parte dos alunos da UFBA (Universidade Federal da Bahia) ainda não conhece sua história e seu trabalho.

O emeio que recebi, parte dele transcrito acima, revela um pouco daquilo que não vemos na grande imprensa ou mesmo nos saites e blogs que algumas universidades ainda fazem sabiamente manter como ponte de comunicação com seus alunos. Relendo o emeio, me ponho a pensar. Talvez pensem que seja mesmo um desperdício entrevistar e divulgar o que pensam animadores culturais como Zilda Paim, ou portadores de saberes que vivem à sombra. Preferem abordar personalidades que já tenham grande visibilidade na mídia, independente dos valores culturais que defendam. Passou em branco, por exemplo, em 12 de dezembro, o centenário de nascimento de Oneyda Alvarenga, discípula favorita de Mário de Andrade.

O que se depreende dessa atitude é a absoluta desnecessidade de se construir escolas, já que as crianças prescindem de outros conhecimentos que aprendem naturalmente nas ruas, nos programas “educativos” transmitidos pela maioria das redes de rádio e televisão comerciais e também através da Internet, onde conhecimentos se misturam a um enorme lixo cultural. Não nasceram analfabetos? Que continuem assim. Para que construir escolas, afinal?  Que se virem nas ruas, que aprendam nas muitas mídias alienantes que estão espalhadas nas telas de televisões ou infiltradas na Internet. Ou talvez naquela outra grande escola, “a da vida “, onde é farta a munição letal traduzida nas chamadas “cracolândias”. Para que, também,  publicar livros que não sejam apenas de entretenimento? Às favas a literatura em geral, ao lixo os poetas e pensadores.

Imagino que nem toda a Universidade pense desse jeito.

Tomara que não.

60 ANOS 

Escrevo de madrugada, ainda atordoado com as perdas, num mesmo dia, de três nomes importantes da cultura: o ator/diretor Sergio Brito, o carnavalesco Joãosinho Trinta e a cantora Cesária Évora. 

Também estou mexido, porque sou mais idoso que a cantora (70 anos), devo estar na faixa de Joãosinho Trinta (76 anos)  – e apenas 11 anos mais novo que Sergio, 88 anos.

Assesto minha lupa em 1951, ano em que batucava no teclado de uma Remington a minha coluna sobre discos na revista “Rádio-Entrevista”, que tentava competir – sem êxito, diga-se de passagem – com a badaladíssisma “Revista do Rádio”, do Ancelmo Domingos. Nossa redação ficava no mesmo prédio do estúdio do grande Halfeld, o “fotógrafo das estrelas”, título que dividia com Ávila e, um pouco abaixo, Diler e José.

Tinha 16 anos, e vivia repleto de sonhos. Perambulava pelos corredores da Rádio Nacional buscando notinhas pra coluna que escrevia. Me dava um orgulho danado de ser chamado de “jornalista”, que aliás foi como Linda Baptista me apresentou ao Getúlio Vargas quando por ela fui levado para despedir-se do presidente , já que estaria viajando naquele mesmo dia para a Europa para divulgar a boa, a ótima música brasileira que ela interpretava.

Uma das minhas colunas, naquela revista, foi republicada no livro “Áporo Itabirano, epistolografia à beira do acaso” (Imprensa Oficial de SP).

FINALIZANDO

Esteve aqui em casa a grande Fernanda Montenegro, que veio gravar a narração do especial “Áurea Martins Iluminante”, do qual também participa meu querido Chico Buarque, dividindo a bela “Maninha” com nossa Cara Preta – como Áurea se auto denomina. Informação colhida no estúdio da Biscoito Fino: a segunda voz de Chico na gravação original, dividida com Miúcha, foi escrita por Tom Jobim.

Pensei o seguinte: como agradecer a vocês, possíveis leitores do nosso blog, todo esse carinho pelo nosso trabalho? Como agradecer à equipe que construiu esse saite com tanta competência e carinho?
Pedi à nossa querida Áurea e aos parceiros Vidal Assis e Luizinho Barcelos que fossem comigo até o estúdio de meu sobrinho Saulo, pai de Giulia Battesini, sobrinha-neta querida, para gravar duas canções e dependurá-las no varal (ops!) de vocês. Metáfora, usei de metáfora, Pavan!

Portanto, feliz 2012!

LOUVA-A-DEUS (Luis Barcellos/Vidal Assis/HBC)

Um louva-a-deus pousou em minhas mãos
pedindo que lhe construísse uma casa.
E aí pensei : mas por que não ?
e à imaginação logo dei asas.
E ornei com lambrequins toda a fachada
Dos gomos de tangerina armei janelas
com samambaias fiz o telhado
com asas de borboletas teci os cortinados
E para alvorecê-la convoquei
mais de meio milhão de vagalumes
E plantei pés de abio, tamarineiros   
que espalharam essências e perfumes
E cobri seu chão de turmalinas
E inventei um céu de colibris
Foi assim, louvando a Deus por mim,
que o meu louva-a-deus ficou feliz.

(É parábola, mentira -  dirão os descrentes
incapazes de inventar um novo mundo
são coitados que jamais foram poetas
e os poetas, dizem eles, são dementes
que no abstrato infinito tão cheio de véus
pintam boisinhos pastando sobre as nuvens
onde os duendes regam as estrelas e o céu
com o pólen dos girassóis, ouro e penugens.

QUEIRA DEUS (Samba bíblico ) (Vidal Assis / Hermínio Bello de Carvalho)

I

... deixa pra lá
Já não sei se estou mesmo aqui ou acolá
Há um porém
De joelhos, prometo, eu não vou te implorar
Mas deixa estar
Essa sofreguidão ainda vai terminar
E é bom te avisar
Nesse jogo é costume se trapacear

E queira Deus
Que eu não vá me resignar
Nem me arrepender do que fui, do que fiz
Quem vai me julgar?
Se até Judas forjou
Um beijo antes de atraiçoar
Esqueça o que tanto jurou
Deixa pra lá
Se Madalena pecou
Por que é que eu não posso pecar?
Mas se arrepender como fez
Nem pensar 

II

Repare bem
Se pedires um beijo eu vou regatear
E vou te flechar
qual São |Jorge que um dia o dragão fez sangrar 
e ao ver-te abrir as comportas do corpo eu possa refugar!
Ver-te ganir e gemer e ladrar
Qual um cachorro sarnento
um afago a  implorar

E queira Deus (...)

(Mas se Jesus perdoou
Não pense que eu vá perdoar
Esqueça que um dia te amei
E deixa pra lá ...)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Amor não explícito

A CPFL Cultura vem promovendo em Campinas (SP) a série de palestras "Paixão e Ódio na Canção", com curadoria de Zuza Homem de Mello. Em 19 de agosto passado, o evento teve a participação de Hermínio, que falou a respeito do tema "Amor não explícito" em seu cancioneiro. A palestra contou ainda com a presença do pianista Marcelo Onofri. Confira como foi:

Amor não Explícito from cpfl cultura on Vimeo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

"Áporo Itabiraro" – Lançamento virtual



Lélia Coelho Frota, antropóloga falecida há um ano, seria a prefaciadora do “Áporo Itabirano – Epistolografia à beira do acaso”, editado pela Imprensa Oficial de São Paulo. O  livro revela as cartas que Carlos Drummond de Andrade e eu trocamos durante alguns anos. Não foi providenciada uma resenha formal para o lançamento do livro, mas de alguma forma ela foi brilhantemente rascunhada por Cecília Scharlach, no posfácio da edição.

Uma querida amiga sugeriu que eu fizesse um vídeo-release, mas confessei a ela que não tinha a menor idéia de como produzir um suporte como aquele. Recomendou-me o trabalho de Elisa Gaivota, fotógrafa excelente – e assim nasceu o trabalho que a crítica estará recebendo junto com um exemplar do livro.

Mas, e a resenha?

A solução foi improvisar uma auto-entrevista, uma forma de driblar qualquer propaganda enganosa sobre esse livro. E é o que passo a fazer em seguida.

O que mais chama atenção nesse livro?
O carinho e o respeito com que Drummond acolhia meus projetos culturais, no período em que eu atuava na função de gestor da Divisão de Música Popular do Instituto Nacional de Música, então dirigido pelo maestro Edino Krieger. Também terá pesado bastante nessa relação a amizade que me unia ao cronista João Ferreira Gomes, o Jota Efegê. Para se ter uma idéia, fomos padrinhos de casamento de Zica e Cartola. E foi Jota, afinal, quem me apresentou a grande Araci Cortes no restaurante Zicartola, isso por volta de 1962/63.

A primeira mensagem enviada a você por Drummond é de 3 de agosto de 1964. Começa aí a relação de vocês?
Não sei dizer. Nessa época eu vivia num apartamentinho tipo “Já-vi-tudo”. Você entrava, dava três passos, e já se deparava com a janela de frente pra rua. Discos, livros, minha máquina de escrever – tudo isso me exigia um comportamento quase minimalista dentro daquele espaço mínimo. Eu não dispunha de meios de arquivar tudo que eu mesmo produzia, nem sequer arquivar a correspondência, relativamente extensa, que eu mantinha com amigos que viviam no exterior, como Laurindo Almeida, Oscar Cáceres e Maria Luisa Anido, violonistas. Quantas partituras de Villa-Lobos, por exemplo, enviei pro Laurindo – que por sua vez me fazia chegar às mãos os muitos discos que gravava nos EE.UU., onde morava. Guardar como? Mas consegui preservar, por exemplo, uns cartõezinhos do Manuel Bandeira, que deveriam estar nas páginas do “Áporo”, mas a família não autorizou essa utilização. Infelizmente, por esse problema de pouquíssimo espaço, destruí muita coisa – e que me perdoe meu querido Sergio Cabral, que terá um ataque de fúria ao ler essa declaração...

O público alvo desse livro, você consegue identificá-lo?
Não muito exatamente. Durante algum tempo ministrei uma oficina, a Oficina de Coisas, na Escola Portátil de Música. Exibia programas que produzi para a extinta TVE (hoje TV Brasil), e um dos meus carros-chefe era um especial com Aracy de Almeida. Ela contava das rodas que freqüentava: na Taberna da Glória com Noel Rosa, Mário de Andrade “e outros pilantras”, como ela a eles se referia. E, no Vilariño,  seus encontros eram com Vinicius de Moraes, Rubem Braga, Antonio Maria, Di Cavalcanti. Nessas oficinas, eu falava muito de estranhezas, como a voz de Clementina, um poema de Drummond, a voz de Pastora Pavon (musa de Garcia Lorca e tema da palestra “La Teoria y Juego del Duende”, de 1922) –  e de outras belezas que nem sempre são consumidas porque não estão acessíveis a uma gama enorme de consumidores. O público alvo desse livro, concluindo a minha/sua pergunta, seria a moçada – quase 900 alunos!  – da  Escola Portátil de Música. Porque lá não se discute música, apenas. 

E a crítica literária?
Desde que estreei em livro, isso em 1962, tive acolhida boa da crítica: Sergio Milliet, Péricles Eugenio da Silva Ramos, Antonio Olinto, Stella Leonardos, Álvaro Moreyra, Pedro Bloch, Guilherme Figueiredo, Homero Senna, José Conde. Eu publicava apenas poesia.  Quando a Editora Martins  Fontes publicou a antologia “Embornal” (2005) comecei a perceber que estava cada vez mais difícil o processo de divulgação. Mas nem posso me queixar. Alguns poemas meus entraram em antologias, uma delas feita pelo jornalista Manuel da Costa Pinto (“Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século 21”, Publifolha) .

E o “Cartas Cariocas para Mário de Andrade”?  Também tem o caráter epistolográfico?
Não conheci Mário, que morreu em 1945, quando eu tinha dez anos. Vou me esquivar de um delírio que me acompanha até hoje, porque, muito menino, eu tinha fascínio pela Taberna – e alimento a ilusão de tê-lo visto por lá. Porque era um garoto peralta, que vivia escapulido para a rua, e morava no mesmo bairro onde ficava aquele estabelecimento. Villa-Lobos dizia que suas músicas eram como cartas espalhadas ao vento, delas não esperava resposta. Enfim: esse livro é praticamente um monólogo, o diálogo epistolográfico é meramente ficcional.

Drummond sempre atendia aos seus pedidos?
Que eu me lembre, só ignorou um: quando pedi que escrevesse sobre Clementina de Jesus. Foi uma pena, porque outros intelectuais e artistas de todas as áreas se manifestaram sobre ela – inclusive Nelson Rodrigues.

Ressaltaria algum capítulo especial no “Áporo”?
O episódio com Neuma, que dividia com Zica (do Cartola) o posto de Primeira Dama da Mangueira. Ela era fascinada pelo método Paulo Freire, e o adotava nas improvisadas aulas que dava para a garotada do morro. Escrevia um palavrão no quadro negro, a garotada estava familiarizada com aquele linguajar, e o processo de ensinamento se dava por aí. Ela adorava Drummond, lia Drummond. E um dia, quando ele foi escolhido como enredo da Escola, a imprensa se alvoroçou e um jornal quis promover o encontro de Neuma como Poeta. Conto isso no livro.

Faltou abordar algum assunto no “Áporo”?
Sim, faltou. Não contei o quanto foi importante conhecer a profa. Oneyda Alvarenga, discípula dileta do Mário de Andrade. Foi Drummond, tenho quase a certeza, quem me sugeriu que eu a procurasse, porque naquela época eu fiz um projeto em homenagem aos 90 anos que o Mário de Andrade faria. Dona Oneyda já estava doentinha, mas me recebeu efusivamente, colaborou com o projeto escrevendo um texto lindo – e me proporcionou retribuir tanta gentileza quando consegui uma verba para que sua equipe concluísse, enfim, o “Dicionário Musical Brasileiro”, tarefa que herdou de Mário. Infelizmente, quando o livro foi editado, e é aliás dedicado a mim, ela já não estava entre nós. Vale a pena lembrar que a edição desse livro se deve a uma sugestão a mim encaminhada pela Lélia Coelho Frota, então minha colega na Funarte.     

O “Áporo” é uma edição de luxo?
Sim, e nele vão encontrar um pouco da trajetória de um gestor cultural que teve o privilégio de ter seus sonhos e projetos estimulados pelo nosso maior poeta. Esse estímulo, enfim, achei oportuno que viesse a público. E a Imprensa Oficial fez um belo e competente trabalho de editoração.

Algum novo livro à vista?
Sim, o “Figuras Musicais”. São crônicas ilustradas pelo Baptistão, Bap, cartunista fantástico. Alexandre Pavan está fazendo a editoração do livro, enquanto finalizo o “Passageiro do Relâmpagos” e o romance “Antonio & Antonio’.

E o que você achou da entrevista?
Entrevistador e entrevistado tem uma coisa em comum: um ego que! 

sábado, 21 de maio de 2011

Pinga fogo


Oneyda Alvarenga

Começo falando da Prof. Oneyda Alvarenga, a grande discípula de Mário de Andrade. No calendário caprichosamente produzido pelo Museu da Imagem e do Som, constato que 2011 é um ano repleto de centenários (*) e,  entre eles, o da Profa. Oneyda.  Não fui generoso, em meu último livro  – “Áporo Itabirano” (Imprensa Oficial, 2011) – ao esquecer de narrar nosso encontro em São Paulo, em 1983, ano em que celebrávamos os 90 anos de seu/nosso Mestre Mário de Andrade. E ela, sua discipula dileta – e recomendo que se leia “Cartas, Mário de Andrade Oneyda Alvarenga (Liv. Duas cidades, 1983). Devo esse encontro à Telê Porto Ancona Lopes e, também, a Flávia Toni, ambas do IEB, Instituto de Estudos Brasileiros, que tem o privilégio de abrigar todo o acervo de Mário. Fui visitá-la em São Paulo, ela já doente (e doente terminal, sabia-se), mas me recebendo com uma generosidade que, presumo, aliás tenho a certeza, tenha sido herança de seu Mestre. 
Tarde inesquecível. Perguntei a quantas andava o “Dicionário musical brasileiro” idealizado por Mário e entregue a ela para ser finalizado. Mário faleceu em 1945, e o “Dicionário” era um monte de envelopes cheio de verbetes, nada mais do que isso. Que não se despreze, entretanto, aquele espólio cultural  construído dia a dia, fruto de uma quase obsessão. O Dicionário estava praticamente pronto, faltando apenas fazer uma editoração da pesquisa.  Não havia mais verbas para remunerar a equipe que iniciara o trabalho, me informou a Fessôra. E ela mesmo se sentia sem forças para retomar aquele legado que o Mestre lhe outorgara. Nada prometi, mas no Rio de Janeiro fui à busca de patrocínio, e o consegui. O Dicionário foi, enfim, finalizado – mas a Professorinha Oneyda não chegou a folheá-lo. Lembro que, à véspera de seu desaparecimento, Telê me telefona – e lá fui eu me despedir da Fessôra. Levei flores ao seu leito no hospital, ela já me parecia ausente. Voltei para o Rio e, no dia seguinte,  soube de sua partida. Comentei com Flávia Toni da minha tristeza em não ter sido reconhecido. Mais ou menos ela me narrou que, depois de minha visita, d. Oneyda acordou e, cercada de flores, respondeu à Flávia que lhe perguntou quem as havia trazido. “Foi o Hermínio”. Que privilégio, Deus meu, havê-la conhecido.

*****
Hipocrisia    

Despindo os véus da hipocrisia e contra todas as barreiras que encontraria no Congresso (as bancadas religiosas, sobretudo) – foi reconhecida, pelo Supremo Tribunal Federal,  a união entre pessoas do mesmo sexo. Há, imediatamente, que se dar alguns passos adiante: a penalização da homofobia e uma discussão, igualmente despida de hipocrisias, sobre a descriminalização das drogas.  Falo isso com absoluta conhecimento de causa: sou um dependente químico. Não consigo dormir sem o uso de comprimidos tarja-preta, igualmente receitados junto a outros remédios contra uma depressão compulsiva. Além do mais, gosto de beber meu vinho. Os comprimidos tarja-preta os adquiro nas farmácias mediante requisição médica. A fiscalização, louve-se, é rigorosa. Meus vinhos os adquiro e os bebo publicamente, sem que me exijam nada – além do pagamento cash ou via cartão de crédito.  Mas o meu vinho, o uisquinho de Vinicius ou a cachacinha de Lula – são drogas. Repito: drogas.

Fume à vontade, beba hectolitros de álcool, bata com seu carro, mate uma porrada de pessoas – mas não será por falta da absurdamente hipócrita advertência das indústrias que fabricam essas “drogas sociais”, advertindo nas propagandas: “o cigarro pode causar câncer”. Ou então, “beba moderadamente". "Se beber não dirija, se dirigir não beba”. Ou seja, a indústria tabagista, assim como a ruralista, a evangélica, a do tráfico, age com extrema sapiência ao não querer uma discussão aberta sobre o assunto, fugindo ao debate aberto que, já se vê pelos noticiários, está passando da hora de ser discutido. Já fui tabagista, mas porque achava elegante tragar um cigarrinho através de uma piteira longuíssima, coisas que aprendemos vendo os filmes produzidos por Hollywood e logo copiados pela nossa indústria tupiniquim.  Mas toda essa drogalhada é reconhecida pela sociedade e amplamente amparada pela publicidade que escancara o prazer de seu uso

Converso essas coisas aqui porque me assusta, e me assusta muito, o aparecimento, na área de consumo de drogas, de mais um sub produto da cocaína, mais alucinógena e dependencial do que o crack, e ainda mais barata, e por isso mesmo de mais fácil circulação entre a garotada atraída para seu consumo. Oxi seria o seu nome. Você, que circula pelas ruas, já deve ter flagrado um monte de crianças e adolescentes, e também alguns adultos, consumindo essas drogas. Esses dependentes terão, sabe-se, pouco tempo de sobrevida ao consumo que fazem dessa drogalhada que chega pelas mãos dos traficantes. E, para obtenção dessas drogas, vendem seus corpos  e almas e sonhos – se é que podemos falar em sonhos  quando vemos esses jovens suicidas serem levados ao sacrifício sob o silêncio de parte da sociedade e dos poderes que a representam. 

Seria leviano afirmar que tal silêncio abriga uma certa indiferença ou mesmo permissivividade por parte dos órgãos que deveriam cuidar do assunto. Porque só despertamos para a realidade quando somos encostados no muro,  ameaçados por um canivete afiado, uma faca enferrujada ou até mesmo um revolver de brinquedo.

Não há porque discordar do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: há que se trazer essa discussão não só para os fóruns adequados, mas com a participação ativa de toda a sociedade. Mas que esse debate não se dê em meio às  ondas de voluptuosa hipocrisia que costumam cercar essas discussões. Duvido, e duvido muito, que alguém fique indiferente ao noticiário dos jornais, sobretudo os televisivos, falando sobre as cracolândias. Não tenho filhos nem netos consangüíneos, mas não preciso te-los para sabe-los – parafraseando um verso de Vinicius de Moraes.

Sou contra a pena de morte, mas sou a favor de se classificar, de se tipificar  como crime hediondo, passível das penas mais severas, a quem induz uma criança ao uso dessas e outras drogas. Elas, essas drogas mais recentes e baratas e de mais rápido efeito, mais do que  degradar, fazem-nas  prostituir-se, induzem essas crianças à morte, a um tipo de suicídio que nem ela mesmo tem consciência de que o está praticando.

Sem hipocrisia, Presidenta. Temos ministérios demais, e políticas de menos. Senhores parlamentares, juristas, jornalistas, compositores, gente de todas as cores (como no belo samba de Lupicinio) – há que se unir para uma discussão sobre essa praga que dizima a vida de milhares de crianças e adolescentes.

*****
A Ministra

Existe alguma dúvida de que a ministra Ana de Hollanda está sendo fritada, colocada como carne de segunda num espeto de churrascaria chinfrim, assada como uma posta de acém colocada na brasa? Há quem duvide disso? É o chamado “fogo amigo”, partido de agentes culturais insatisfeitos ou mesmo de parte da classe artística que ainda não conseguiu a voz sussurrante da Ministra. Mas que ela aprenda também a contrapor-se a esse fogo amigo com ações reais: a abertura de mercado de trabalho, por exemplo. E a todos nos se recomenda uma certa paciência com a discussão sobre o uso da Internet, e com todas as mídias que estão sendo colocadas no mercado – e que fazem uso da música, dos textos, de tudo aquilo que produzimos. É um fenômeno muito recente, e que jamais alcançará contornos definitivos. A tecnologia avança de uma forma assustadora.    

(*) Peterpan, autor de “Se queres saber”, sucesso original de sua cunhada Emilinha Borba, e depois regravado esplendidamente por Nana Caymmi; o pintor argentino Carybé, que adotou a Bahia como berço, e que ilustrou obras de Garcia Márquez, Mario de Andrade, Pierre Verger e, sobretudo, de seu grande amigo Jorge Amado. (Tenho belas lembranças de uma verdadeira maratona que fizemos por Salvador, ele mais Jorge, Caymmi e eu – acho que já contei essa história num de meus livros); Assis Valente, outro bahiano porreta, consagrado por Carmem Miranda, e nascido em Santo Amaro da Purificação; Nelson Werneck Sodré, e há que não esquecê-lo por ter-nos legado a “História da Literatura Brasileira”; Mário Rossi, autor do “Beija-me”, gravado inicialmente por Ciro Monteiro, e co-autor do belíssimo “Cidade do interior”, de parceria com Marino Pinto, consagrado por Elizeth Cardoso; Paulo Gracindo, nosso genial Odorico Paraguaçu, personagem criado por Dias Gomes – sem esquecermos que fazia dupla com Brandão Filho no “Balança mas não cai”; Anacleto Rosas Júnior – dou um doce para quem souber quem foi. Autor de “Três boiadeiros”, “Casinha branca", “Rancho vazio” (não confundir com "No rancho fundo"); Antonio Almeida, autor de sucessos memoráveis. Fiquemos com as figuras femininas que exaltou: “Juraci”, “Doralice”, “Helena, Helena”. E quem não sabe cantarolar o “A sudade mata a gente”? Teve inúmeros parceiros, entre eles Braguinha, Mario Lago, Alberto Ribeiro; centenário também de Nelson Cavaquinho, cujo primeiro registro de voz-e-violão, ah! não me tirem esse privilégio de tê-lo feito no LP “Elizeth sobe o morro” (1965). Orgulho-me, ainda, de ter sido seu parceiro; Mário Lago, também fazendo 100 anos, uma das fiuras antológicas da cultura brasileira. Esplêndido letrista, fantástico memorialista. E, enfim, a Prof. Oneyda Alvarenga. Quase todos os conheci pessoalmente. O tempo, enfim, não pára – já dizia Cazuza.   


quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os 7 Mandamentos

01. Não pense pequeno, que isso é próprio dos medíocres e dos covardes.

02. Trabalhe em equipe: a capacidade de germinação se amplia.

03. Convoque os mais honestos e competentes, deixando de lado os invejosos e os carreiristas de poder (lembre-se que ele é sempre provisório). Desconfie dos bajuladores e dos muito falantes, que nem sempre são os mais operosos. São surfistas do poder, que sobrevivem de futricas e agem sempre à sombra. Abra espaço para gente nova. Oxigenar as idéias é sempre estimulante.

04. Não tenha medo da concorrência. Se você encontrar alguém mais competente do que você, aprenda com ele. Você vai crescer mais. Também não tenha medo de copiar uma boa idéia. Mas não se esqueça de dar o crédito a quem a gerou. Lembre-se: ninguém é absolutamente genial para criar todos os dias uma coisa nova. Não se esqueça também de que seus delírios são pagos pelo contribuinte. Mas sonhe sempre, cultive utopias.

05. Não respeite quem sonega informação, engavetando-a ou guardando-a só para si. Desconfie daquele que não ensina jamais o chamado “pulo do gato”. Quem assim procede está praticando um crime de lesa-cultura. Acredite: o meretrício e o genocídio cultural existem sim e em doses industriais e deliberadamente alienantes. Se você desconfiar de algum mal-feito, bote a boca no trombone para não ser conivente. Ninguém é tão poderoso assim que não consiga se desestabilizar diante de uma denúncia bem fundamentada.

06. Vá pelo caminho alternativo. Faça com que seu projeto tenha efeito multiplicador, e que seus eventos gerem resíduos (é assim que se faz memória: através do registro do fato). Procure parcerias. Não acredite naqueles que pregam que o povo não gosta de coisa boa e que toda juventude é alienada. Desconfie muito de quem despreza os mais velhos. Aprenda com os índios que veneram seus pajés e com eles se aconselham. Mário de Andrade era um pajé.

07. Acredite: cultura é matéria de segurança nacional, nossa música é um bem ecológico. Pense grande. Pense bonito. Pense brasileiro.

HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO




***
Descobri o texto acima nos guardados do poeta e compositor Hermínio Bello de Carvalho. O documento não possui data, tampouco o autor soube me precisar quando o escreveu. Mas podemos dizer, quase com completa certeza, que é do período (1977-1989) em que Hermínio foi diretor da Divisão de Música Popular Brasileira da Funarte, onde, entre tantas ações memoráveis, criou o Projeto Pixinguinha. O texto original se dirigia aos seus colaboradores naquela instituição. Acredito que todos os mandamentos permanecem atualíssimos e devem ser compartilhados por quem trabalha direta ou indiretamente com a cultura.

ALEXANDRE PAVAN

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Lançamento em São Paulo


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terça-feira, 5 de abril de 2011

Discurso de doação do Acervo HBC

Meus amigos,

Não gosto de discursos, mas rabisquei um agradecimento formal a todos que trabalharam na construção do saite Acervo HBC. Deu-me canseira, confesso. Fiz, refiz, rasurei, detonei alguns tópicos e eis que me deparo com a própria essência desse trabalho: a descoberta, hoje, de uma pasta chamada “Empório da Magia”.

Isso foi em 1997, façam as contas. Lembro que, para tocar o projeto adiante, coloquei Chico Buarque num estúdio para narrar um texto descritivo daquilo que, no futuro, seria o saite que ora vos contempla.
Volto a dizer: a essência do trabalho está aí, na surpresa da (re)descoberta de um registro sonoro (às vezes, ocasional) de visitas ilustres à minha casa. Como Valzinho, Silas de Oliveira ou eu mesmo visitando Tom Jobim na companhia de Aracy de Almeida. Muita coisa se perdeu, mas a essência do acervo foi preservada: poder encontrar o que considerávamos na lata do lixo da tal memória.

Transcrevo o discurso que, olha só!, prefiro antecipar em nosso saite – porque na hora agá ficarei olhando pro chão, orando para que ele se abra e me engula. Nessas horas, fico parecendo a redução mais perfeita e completa do 3 em 1, ou seja, a dos Três Patetas. Este vosso amigo torna-se a versão mais perfeita do imperfeito e do desastrado palhaço que, às vezes, faz a tal platéia gargalhar – como já se ouviu naquele samba do Nelson Cavaquinho.
Hermínio Bello de Carvalho


01. A doação de meu acervo ao Museu da Imagem e do Som, que hoje está sendo oficializada, tem uma característica: dos presumíveis 50 mil itens que fazem parte desse conjunto, 10 dez mil já estão disponibilizados no saite Acervo HBC.


02. Esse trabalho de construção do saite deve-se a uma equipe de jovens e talentosos operários culturais, aqui representada por Luiz Boal, da produtora Olhar Brasileiro. Quero citá-los, um a um: o jornalista Alexandre Pavan, o músico e parceiro Luiz Ribeiro, Jacira Berlinck e Tatiana Maciel. Devo acrescentar que uma primeira tentativa de organizar esse acervo foi feita em 1997, sob a coordenação do produtor João Carlos Carino, e com apoio financeiro do empresário Paulo Amorim.

03. Devo um agradecimento especial ao meu irmão e companheiro Prof. Luis Sergio Bilheri Nogueira, que há mais de quatro décadas acompanha o meu trajeto na área da cultura. Esteve ao meu lado, e de Albino Pinheiro, no projeto “Seis e Meia” – do qual resultou um macro programa que levei para a Funarte. Falo do Projeto Pixinguinha, cuja ampliação a nível nacional também se deve a ele.

04. Pedi à presidenta do MIS que convidasse um grupo de amigos que fazem parte de meu acervo afetivo: Áurea Martins, que aqui representa Elizeth Cardoso e Zezé Gonzaga, cantoras que estiveram presentes em nossas vidas, e que deram vida às canções que compus com meus parceiros.

05. Pedi que à esta cerimônia não estivesse ausente um amigo que há quase meio século está ao meu lado. Estive, com Ismael Silva, na cerimônia de seu casamento com Magali. Vi seus filhos crescerem: Serginho, Mauricio, Claudinha. Estou me referindo ao amigo Sergio Cabral, que me inspirou na doação de meu acervo ao MIS. Somos, de alguma forma, discípulos do velho Henrique Foreis, o Almirante, e com ele e Jacob do Bandolim aprendemos o quanto é importante registrar, documentar, preservar e fazer circular os bens culturais que chegaram às nossas mãos.

06. Pedi ainda que não faltasse à esta cerimônia uma pessoa com quem aprendi a melhor compreender a natureza e a importância de sua preservação. Ele é Zé Luiz do Manguezal, da Colônia Z-10 de Pescadores, da Ilha doGovernador, que navega num barquinho chamado Chico Bello – e não me perguntem o porquê desse nome.

07. Pedi também que a presidenta Rosa Maria Araújo convocasse um representante da Escola Portátil de Música, a quem doarei outra parte de meu acervo, constituído de centenas de livros, inclusive a coleção Mário de Andrade. Parte desse acervo áudio-visual já integra a midiateca que tem meu nome, e que está em pleno funcionamento naquela Escola. Classifico como doação partilhada, essa que farei, porque alimento a esperança de que conseguiremos recuperar a integralidade dos programas culturais que produzi para a Rádio MEC, na década de 1950, e também para a TVE, hoje TV Brasil. A transferência dessa outra parte do acervo será entregue à Escola Portátil, tão logo ela ocupe o prédio que lhe foi destinado como sede, na velha rua da Carioca. Louve-se o Sr. Governador do Estado Sergio Cabral e a Secretária de Cultura Adriana Rattes por esse olhar atencioso para uma instituição que atende a mais de novecentos alunos no Rio de Janeiro. Como o próprio nome indica, a Escola é Portátil, podendo circular, como já circula, por todo o Brasil. Adriana é bastante paciente com o “buzinaço” que faço, conclamando a volta do projeto de Albino Pinheiro à Praça Tiradentes. Sábia também vejo que é a escolha de Antonio Grassi para presidir a Funarte. Não deixa de ser uma sinalização de que, em breve, estará novamente circulando por todo o Brasil o Projeto Pixinguinha. É um indicativo de que instituição está sendo recolocada condignamente no organograma do Ministério da Cultura, cuja titular, Ana de Hollanda, foi até pouco tempo vice-presidente desta Casa.

Finalizando, um agradecimento à presidência, à vice-presidência, às diretorias do Museu da Imagem e do Som – e a todos seus funcionários que devem estar orgulhosos com a perspectiva de uma nova e moderna sede em Copacabana. E rendo minha homenagem a Mauricio Quadrios, primeiro diretor desta casa, que inspirou Carlos Lacerda a edificar este Museu.

A Pixinguinha e Clementina, minhas saudades.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Repaginando a vida

Já gostei de festejar meu aniversário e, sobretudo, o aniversário dos outros. Lembro os de Ismael Silva, comemorados quando ainda habitava um “já-vi-tudo” no Beco do Rio, a pouquíssimos metros da antiga Taberna da Glória. A festa se espalhava pelo corredor do nono andar onde eu morava, com total cumplicidade (e adesão) de meus vizinhos. Bons tempos aqueles! E, é claro, quando o corredor apresentava congestionamento, o povaréu debandava para onde? Para a velha e hospitaleira e gloriosa e imbatível e saudosa Taberna – a antiga, aquela onde Mário de Andrade bebia com seus amigos, e onde também eu bebi com minha amada Aracy de Almeida.

Hoje faço 76 anos, contrariando todas as minhas expectativas. Estou vivo. Melhor dizendo, tecnicamente vivo.

Os jornais desta semana comentam a doação de meu acervo ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ). Foi uma semana estafante: entrevistas, filmagens, algo que tomou proporção inusitada. Alguns chegaram a especular sobre a minha saúde. Calma, minha gente!

Resolvi fazer um texto, porque eu mesmo precisava me explicar essa quase doação de órgãos vitais à minha vida.

Desenho de Oscar Niemeyer

A doação que faço ao MIS não é produto de nenhum desânimo pessoal, mas o de ver minha casa abarrotada de material que poderia estar em circulação, tal e qual já experimentamos fazer na Escola Portátil de Música com a midiateca que tem meu nome. Sempre vociferei que a cultura é dinâmica, plural e tem que circular. Sempre lutei, sobretudo, quando trabalhei na Funarte, para que houvesse uma política de ocupação de espaços e, paralelamente, uma rigorosa política de formação de novas e jovens platéias.
Lamento, por exemplo, que o Projeto Pixinguinha (inspirado no Seis e Meia de Albino Pinheiro) tenha sido colocado fora de circulação. Com esse corte de 50 bi no orçamento, acho que a ministra Ana de Hollanda e o Antonio Grassi, presidente da Funarte, vão ter que se virar para reverter a situação. Que nossa presidenta, mais o Mantega, tenham sensibilidade para não contigenciar recursos para aquele já paupérrimo Ministério.

Outra reivindicação que faço – e, aliás, a encaminhei ao governador Sergio Cabral – seria a de ocupar as UPPs com ambulatórios culturais, aproveitando os recursos humanos formados pela já citada Escola Portátil e mais os já anunciados equipamentos de saúde e esporte. Bato pé nessa sugestão: a jovem (10 anos!) Escola tem, potencialmente, oficineiros e monitores capacitados para montarem salas de ensino de música brasileira nessas comunidades. É um erro tentar um confronto com o funk e o hip hop, manifestações já sedimentadas nessas unidades. Há que se levar um outro tipo de cardápio musical para essas unidades pacificadas, para que elas conheçam, por exemplo, as tantas jovens orquestras que animam nossas noites cariocas. Isso é, também, uma política de abertura de um mercado cada vez mais afunilado, no qual casas importantes (Canecão, Modern Sound) estão cerrando suas portas.

Acho que a nossa Secretaria de Cultura poderia reabrir o extinto Seis e Meia num horário mais lógico, e reviver, numa ação conjunta com a Secretaria de Educação, as chamadas sessões pedagógicas. Voltei ao Cine Odeon, onde havia assistido um documentário sobre lixo, para ver outro docudrama – o de Elza Soares. Éramos não mais que cinco espectadores naquele teatro lindo, que pode abrigar uma função alternativa no esvaziado corredor cultural da Cinelândia, um bairro hoje quase sem cinemas.

O carnaval de rua, cuja morte decretaram tantas vezes, não está de volta? Convoquem o Monobloco, o Cordão da Bola Preta e outros de igual estirpe para, quem sabe, sacudir os poerentos e modorrentos corredores culturais de uma cidade que possui prédios históricos que precisam promover ações dinâmicas: o Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes, o fantástico auditório da ABI, a Leitaria Cave e a fabulosa Confeitaria Colombo. Sem falar dos bares vocacionados para o encontro dessa gente bronzeada que precisa mostrar seu valor. Vamos fazer bailes públicos sob os pilotis do Ministério da Cultura com a Furiosa Portátil, por exemplo.

Dessacralizar alguns desses templos, levando a garotada a utilizá-los de forma consciente. Seria sonhar muito alto? O canal da Unirio voltou a funcionar, e tomara que tragam nossa Joyce de volta; ela com seus programas paradidáticos arrasadores. E por que não abrir esse canal para nossos jovens criadores (músicos, poetas, compositores) – assim, como deveria fazer a ex-TVE, e como fazia a TV Cultura – em véspera de sucateamento? Enfim: não sonhemos pequeno.

ÁUREA MARTINS

Ontem, 27 de março de 2011, tomei uma decisão: banir de meus textos a palavra invisibilidade, quando tiver que escrever sobre Áurea Martins. Com uma Sala Baden Powell cheíssima, nossa Cara Preta (como ela se auto denomina, jocosamente) deitou e rolou, fez o que quis com a platéia e com seus músicos. “Meu Deus, onde andava essa mulher?” – veio me dizer um jovem, fascinado com o recital cheio de provocações (ela cantando a capella, ela desfiando o “Bala com bala”, literalmente duelando com a bateria do Cassius – “mas o que é que é isso?”

Anuncio o seguinte: agora em abril gravaremos o primeiro DVD de Áurea Martins, “Depontacabeça, até sangrar”. Participações especialíssimas de Fernanda Montenegro, Chico Buarque e Francis Hime.

E abram alas para Áurea Martins, portentosa, passar com seus exuberantes 70 anos.

domingo, 13 de março de 2011

Meu acervo, nosso acervo

Hermínio Bello de Carvalho e sua coleção de LPs 

Cabe uma explicação preliminar: estou sendo assediado pela imprensa para fornecer dados sobre a anunciada doação de meu acervo para o Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, presidido por Rosa Maria Araújo. Tenho uma relação muito antiga com aquela casa, criada pelo governador Carlos Lacerda na década de 1960. O político ficara fascinado com as idéias expostas num texto do crítico musical Mauricio Quadrios, que foi nomeado por Lacerda como primeiro diretor da instituição.

Fiz parte do primeiro Conselho Consultivo, constituído por Ricardo Cravo Albin, que sucedeu a Mauricio Quadros na direção do MIS. Desse Conselho participava o crítico Ari Vasconcellos, que sugeriu, então, que se gravassem depoimentos de grandes figuras de nossa cultura. A sugestão do crítico foi aceita por aquela administração, inegavelmente dinâmica, que atendia às pretensões do novo diretor, a quem a saudosa Eneida dizia sofrer de “exuberante modéstia”. E a prova era a constituição do quadro do Conselho “Superior”, em número igual ao da Academia de Letras. Não se pode criticar Ricardo Cravo Albin por sonhar grande, vejam o caso do próprio Instituto que fundou para legar seu nome à posteridade.

Conversei, este final de semana, com os responsáveis pela criação e manutenção do www.acervohbc.com.br: Luiz Boal (da produtora Olhar Brasileiro), Alexandre Pavan e Luiz Ribeiro.

Expus minha fragilidade pessoal diante dessa coisa chamada Internet, instrumento que não domino. Meu próprio saite o acesso com dificuldade. Numa reunião aqui em casa, Rachel Valença (atual vice-presidente do MIS) me contou ter acessado o saite e encontrado uns sambas de Silas de Oliveira gravados em minha casa há mais de 40 anos.

Cabe explicar que era uma época em que eu era movido pelas manias de Jacob do Bandolim, que tudo gravava, que tudo registrava para seus arquivos. Tinha metodologia, aquele meu amigo: fichas milimetricamente impressas para que rolassem em sua máquina de escrever, numa ordem tipográfica irrepreensível. Até um pentagrama imprimira nelas, para fixar determinadas melodias. Muito tempo depois descobri, em meu arquivo, uma fita de Cartola sendo acompanhado ao violão pelo próprio Jacob, que o levara à sua casa em Jacarepaguá.

Eu já tinha um matulão de tralhas que colecionava. Roteiros em profusão de um tempo em que militei na Rádio MEC (da qual fui expulso depois) e outras centenas de textos de programas na extinta TVE. Atas e mais atas de conselhos dos quais fiz parte e uma parte iconográfica considerável – até um bilhete quase desaforado de Igor Stravinsky é uma das preciosidades desse arquivo.

Ficaria difícil, para mim, conversar com jornalistas sobre o acervo, sem que tivesse um suporte que me fosse fornecido pelos idealizadores e construtores do www.acervohbc.com.

São quase 5.000 LPs, são sessenta e poucas caixas com documentos cujo conteúdo acabei esquecendo, por não manuseá-los com a curiosidade de antes. São não-sei-quantos álbuns encadernados que contam um pouco da minha trajetória, que vale muito mais pelas pessoas que acreditavam naquele jornalistazinho, repórter maquetrefe de um só paletó, que ousou andar de braços com Linda e Dircinha Baptista, foi ao casamento de Heleninha Costa com Ismael Neto, e recebeu Ismael Silva em sua casa – quanta coisa, meu Deus!

Eu gravava tudo, deixava que fotografassem à vontade, mas não posso atribuir isso a um narcisismo meu. Claro que deveria haver um naco de vaidade nessa história. Mas a dimensão de meus arquivos só apareceu há mais ou menos duas décadas, quando comecei a perder amigos essenciais: Walter Wedhausen, Cartola, Nelson Cavaquinho, Elizeth Cardoso, Aracy de Almeida, Heleninha Costa – e sobretudo uma figura icônica dentro de meu currículo cultural, Valzinho. Era um compositor quase invisível, citado apenas, e olhe lá, por Radamés Gnattali e Tom Jobim.

Redescobri-lo, deu-me a certeza de algo que se consolidou recentemente, e conto pra vocês: meu encontro com o professor Antonio Cândido. Numa confêrencia que fez no Instituto Moreira Salles, no lançamento do livro “Pio & Mário, diálogo da vida inteira”, com introdução de Gilda Mello e Souza e traços biográficos de Cândido. Na rápida palestra que fez, confessou esquivar-se dos protagonistas dos fatos que vivenciara, preferindo, segundo ele, os “personagens secundários”. Por isso, ao invés de falar sobre o grande Mário de Andrade, abordou a relação do chamado Tio Pio com o pai do autor de “Macunaíma”.

Personagens secundários? Não custou muito a cair a ficha, como se diz vulgarmente. Dois exemplos vieram claros à memória: Valzinho e Clementina de Jesus, ele personagem anônimo da música popular, área onde Mãe Quelé debutara aos 62 anos de idade.  

Sempre declarei que este saite deveria funcionar como um prestador de serviços.  

A doação que faço atende à essa expectativa. Esclareço mais uma coisa: uma parte de meu acervo pessoal  já está destinado para a Midiateca Hermínio Bello de Carvalho, futuro cento de pesquisas da Escola Portátil de Música que, até 2012, esperamos, ganhará sede própria na rua da Carioca. Há pouco, doei mais de 100 livros para o espaço Vicente Maiolino.

Pedi aos meus irmãozinhos Luiz Boal, Alexandre Boal e Luiz Ribeiro, que me subsidiassem, e aos jornalistas que me procuram, com dados mais substanciosos, que estes, infelizmente, eu não os tenho compilados.  

Essa doação coincide com a edição de “Áporo Itabirano”, que reúne minha correspondência com Carlos Drummond de Andrade, e também com os 76 anos que completarei dia 28 de março corrente. Coincide, ainda, com a gravação de um DVD de Áurea Martins, pelo Canal Brasil/Biscoito Fino, outra personagem secundária que vem à luz, e de forma brilhante, após quase meio século de carreira artística.

Também já entreguei ao produtor João Carlos Carino todos os textos do livro “Figuras Musicais”, que está sendo ilustrado pelo grande caricaturista Baptistão, de São Paulo.

Atendendo ao meu amigo Rodrigo Velloso e ao poeta-compositor-profeasor Jorge Portugal, me associei às comemorações do centenário de Assis Valente, que serão promovidas pela Secretaria de Cultura de Santo Amaro da Purificação, onde aquele compositor nasceu. Será promovido um concurso de monografias, forma de se fazer o registro e obedecer àquele bordão cansativo e enferrujado que brado há longo tempo: “cultura tem que circular”.

Passo ao relatório formulado por meus amigos, e que espero seja imediatamente colocado no blog do nosso acervo.

Grato Luiz Boal. Grato, Alexandre Pavan e Luiz Ribeiro.

P.S. – Há uns dez ou quinze anos, um querido amigo e parceiro  entrou num estúdio para gravar vinhetas sobre aquilo que imaginávamos ser uma tentativa de catalogação de meu acervo. Falo de Chico Buarque de Holanda, que deu esse pontapé inicial no projeto do acervo. Lembro que João Carlos Carino, que então coordenava os trabalhos, reuniu uma equipe para filtrar a parte de áudio do arquivo. A consolidação desse trabalho deu-se, afinal. Há dois anos, graças a Boal, Pavan e Luiz Ribeiro.

Projeto Acervo HBC



ACERVO HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
1ª FASE – Patrocínio Petrobras Cultural ( Março/2007 )


A primeira fase do projeto Acervo HBC foi dedicada à organização do arquivo e a um levantamento mais detalhado de seus itens. Nesse trabalho, para surpresa da equipe envolvida, foi encontrada uma quantidade de documentos muito maior do que se imaginava. Além dos 10 mil itens contemplados neste projeto, é possível estimar outros 40 mil – principalmente material jornalístico, com recortes de jornais e revistas colecionados por Hermínio nas últimas cinco décadas.
Após a organização do arquivo, seus itens foram divididos nas seguintes categorias:

A) Áudio (músicas, entrevistas etc.)
B) Iconografia (fotos, caricaturas, quadros)
C) TEXTO
C1) Poesia (inédita e editada)
C2) Cancioneiro (letras de música inéditas e gravadas)
C3) Crônicas e ensaios (inéditos e editados)
C4) Entrevistas concedidas por Hermínio
C5) Material jornalístico diverso
D) Correspondência (cartas, bilhetes, e-mails, bilhetes etc.)
E) Rádio e Televisão (roteiros, catálogos e documentos de programas)
F) Coleção (documentos pessoais; esboços de projetos; programas e cartazes de shows; partituras etc.)

O número de documentos contemplados pelo projeto Acervo HBC pode ser resumido na tabela abaixo:

Categoria / Quantidade total de itens organizados/catalogados

Áudio = 870 horas
Iconografia = 3.500 imagens
Poesia = 440 textos
Cancioneiro = 305 textos
Crônicas e ensaios = 280 textos
Entrevistas = 45 textos
Correspondência = 500 itens
Material Jornalístico = 2.000 itens
Rádio e Televisão = 2.500 itens
Coleção = 400 itens

Para cada uma dessas categorias foi criada uma ficha catalográfica específica, sob as quais cada item do acervo foi inscrito, de acordo com suas características, tornando simples e rápida sua busca seja por categoria, data ou palavra-chave.

Backup
Os arquivos de áudio do acervo foram armazenados no formato AIFF com cópias em MP3 de alta fidelidade. Os arquivos de imagem, por sua vez, no formato JPEG, com 600 dpi de resolução. Por fim, os arquivos de texto, foram transpostos para .DOC. Além de armazenado no site oficial do acervo, todo esse conteúdo possui uma cópia de segurança armazenada em um hard disk (HD) adquirido pelo projeto com essa finalidade.

SITE
A criação do website do Acervo HBC – produto cultural final deste projeto – teve como princípio uma navegação simples e rápida. Por se tratar de um banco de dados com milhares de itens – envolvendo diversas personalidades artísticas, épocas distintas, enfim, um conteúdo abrangente –, o ponto de partida foi montar um sistema de busca refinado. O visitante do acervo virtual de Hermínio pode simplesmente “passear” pelas inúmeras seções (poesia, áudio, fotos etc.) ou então, caso seja necessário, optar por uma busca detalhada por data e/ou assunto e/ou palavra-chave. Por exemplo, é possível saber quais itens citam a cantora Clementina de Jesus no ano de 1965. Ou então, em quantos arquivos de áudio temos a voz de Elizeth Cardoso.
O Acervo HBC está registrado na internet sob dois endereços (domínios), ambos direcionando o visitante à página do projeto: www.acervohbc.com.br e www.herminiobellodecarvalho.com.br.

Blog do acervo
Durante o processo de montagem do site, foi incorporada a criação do Blog do Acervo, idéia que não estava contemplada na proposta deste projeto. O espaço, localizado na lateral direita da página inicial do site, comportando texto e imagem, será abastecido regularmente com novidades referentes ao próprio acervo. Por meio de blog, o visitante do arquivo virtual ficará informado das atualizações à medida que novos itens forem acrescentados ao acervo.


ACERVO HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
2ª FASE – Doação MIS, Manutenção e Digitalização


O objetivo da ação é evitar que os itens e objetos originais, atualmente acomodados em sua residência, sejam preservados adequadamente e possam ser consultados por mais pessoas.
Por acompanhar as atividades do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro desde que foi fundado (tendo, inclusive, participado de momentos marcantes da instituição), Hermínio tem apreço especial pela casa. Entusiasmado as mudanças planejadas para o MIS, ele oferece ao local a parte de seu arquivo que já foi catalogada e digitalizada pelo Projeto Acervo HBC. Em contrapartida, a instituição contribuiria com apoio para a realização da 2ª Fase do Projeto, que, ao ser finalizada, entregaria (em doação) ao MIS mais itens do arquivo de Hermínio.


O ACERVO
O acervo de Hermínio Bello de Carvalho é um patrimônio que inclui:

1) Áudio – Gravações contendo registros exclusivos e informais, porém de boa qualidade sonora, de apresentações musicais (shows ou ensaios caseiros), depoimentos, conversas e entrevistas de centenas de personagens da música popular brasileira. Alguns exemplos de gravações inéditas:

- Gravação feita na casa de Hermínio Bello de Carvalho com Paulinho da Viola apresentando o samba “Na Linha do Mar” a Clementina de Jesus;
- Depoimentos de Donga e Pixinguinha a Hermínio;
- Dalva de Oliveira canta acompanhada por Hermínio ao violão;
- João Bosco mostra a então inédita “Kid Cavaquinho” para a cantora Marlene, em encontro na casa de Hermínio;
- O compositor Cartola apresenta o samba “Autonomia” para Elizeth Cardoso;
- Aracy de Almeida canta o samba “Filosofia” (Noel Rosa) acompanhada por Nicanor Teixeira ao violão;
- Tom Jobim mostra para Hermínio, em primeira mão, a musica “Inútil Paisagem” (com Aloísio de Oliveira);

2) Iconografia – Além de fotos que documentam a história pessoal e profissional de Hermínio, com registros de centenas de personalidades artísticas nacionais e internacionais, com as quais ele conviveu e/ou trabalhou (Clementina de Jesus, Elizeth Cardoso, Nellie Lutcher, Sarah Vaughan etc.), o acervo ainda reúne desenhos, caricaturas e quadros assinados por nomes expressivos das artes plásticas, como Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres, Walter Wendhausen, Luiz Canabrava, Nássara, Cássio Loredano, Chico e Paulo Caruso, Hermenegildo Sábat, e Mello Menezes, entre outros.

3) Texto
3.a) Poesia – Obra poética completa de Hermínio Bello de Carvallho, com textos já publicados em livros, inéditos e manuscritos originais;
3.b) Cancioneiro – Obra musical completa de Hermínio, com as letras (editadas e inéditas) que ele produziu para os mais diversos parceiros: Cartola, Mauricio Tapajós, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Radamés Gnattali, Jacob do Bandolim, Heitor Villa-Lobos, Eduardo Gudin, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Sueli Costa, Dona Ivone Lara e dezenas de outros;
3.c) Crônicas, ensaios e material jornalístico – Textos (editados e inéditos) escritos por Hermínio Bello de Carvalho, nos últimos 50 anos, a maior parte publivados nos quase 15 livros que tem editados e colaborações para a imprensa desde 1951 (“Revista da Música Popular”, “Leitura”, “Rádio Entrevista”, “O Globo”, “Pasquim” e outros);
3.d) Correspondência – Cartas, bilhetes, e-mails e cartões postais (quase todos inéditos) trocados com personagens como Carlos Drummond de Andrade, Laurindo de Almeida, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Oscar Niemeyer, Elizeth Cardoso, Isaurinha Garcia, Waldemar Henrique, Cacaso, Carlos Cachaça, Luiz Bonfá, Joyce etc;

4) Discoteca - A discoteca atual de Hermínio Bello de Carvalho contem, aproximadamente, 4.500 (quatro mil e quinhentos) exemplares (em 10 e 12”). Segundo estimativa feita por Jairo Severiano, ela abrigava aproximadamente 7.000 exemplares. Ela abrange, sem preconceitos, todas as gamas da produção discográfica brasileira. A coleção referente a Villa-Lobos e outros autores clássicos, foram sendo doadas por absoluta falta de espaço. A que agregava discos de 78rpm, e adquirida de Walter Wendhausen, foi doada ao modinheiro Paulo Tapajós possivelmente na década de 60/70.

Nesta nova fase do projeto, o site do Acervo HBC será ampliado da seguinte maneira:

a) Catalogação e digitalização de mais 10 mil itens do arquivo pessoal de Hermínio Bello de Carvalho, sendo 235 horas de áudio, 200 imagens, 50 poemas, 50 letras de música, 50 crônicas e ensaios, 30 entrevistas, 100 itens de correspondência, 5 mil recortes jornalísticos, 400 itens de coleção e 2 mil páginas de roteiros e rascunhos de projetos de espetáculos e discos;

b) Criação de um canal de vídeos, por meio do qual o site veiculará, semanalmente, programas inéditos de média duração. Com apresentação do próprio Hermínio, os vídeos exibirão os itens do arquivo, explicando o contexto, as histórias e revelando curiosidades. As gravações serão feitas na casa do compositor ou em locações da cidade do Rio de Janeiro relacionadas ao tema a ser tratado no vídeo. Pretende-se, por exemplo, produzir um programa sobre o restaurante Zicartola, cuja fundação foi acompanhada por Hermínio, padrinho de casamento de Zica e Cartola A edição dessa gravação usará fotos, áudios e material jornalístico da época do Zicartola pertencentes ao Acervo HBC. Além disso, o canal de vídeos também oferecerá programas-entrevista em que Hermínio conversará com personagens ao seu trabalho como compositor, produtor e poeta. Por exemplo, um papo com Paulinho da Viola a respeito da parceria de ambos; uma conversa com Turíbio Santos sobre a obra de Heitor Villa-Lobos; entrevistas com Simone, Zélia Duncan, Chico Buarque etc.;

c) Construção de um blog. Hermínio é um pensador da cultura brasileira e, diariamente, produz textos (poemas, crônicas, artigos) referentes aos mais diversos temas. Um blog integrado ao site do Acervo HBC será responsável por divulgar, através de comentários críticos, este vasto material inédito, ampliando o contato com os visitantes da página e abrindo um fórum de discussão. O espaço, localizado na lateral direita da página inicial do site, comportando texto e imagem, será abastecido diariamente. Também por meio do blog, o visitante do arquivo será informado das atualizações à medida que novos itens forem acrescentados ao acervo;

d) Atualização das ferramentas multimídia do site, a partir da renovação do gerenciador de busca, da atualização do design e do gerenciador de conteúdos, e ainda a utilização de uma ferramenta para divulgação do blog e das novidades do site por meio de um consciente e responsável mailing. O portal também será conectado às redes sociais. Assim, cada vez que um item for acrescentado ao site, os internautas que acompanham o projeto no Facebook ou Twitter ficarão informados instantaneamente.

ACERVO HBC – NOVA FASE

Categoria / Previsão de itens a serem organizados/catalogados

Áudio = 235 horas
Iconografia = 200 imagens
Poesia = 50 textos
Cancioneiro = 50 textos
Crônicas e ensaios = 50 textos
Entrevistas = 30 textos
Correspondência = 100 itens
Material Jornalístico = 5.000 itens
Rádio e Televisão = Todo material disponível está digitalizado
Coleção = 400 itens
Roteiros/projetos de espetáculos/discos = 2.000 itens

***
Responsáveis pelo projeto Acervo Hermínio Bello de Carvalho
Alexandre Pavan – Coordenador geral
Luiz Ribeiro – Técnico em áudio e coordenador-assistente
Luiz Boal – Coordenador Administrativo
Jacira Berlinck e Tatiana Maciel – Catalogação e acervo

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A cultura tem que circular

Acho importante que a Ministra Ana de Hollanda tenha mexido nesse vespeiro. Espero que essa atitude estimule uma outra, a de discutir o mercado de trabalho. Feito o pessoal do cinema, também a gente da música se depara com um mercado atrofiado, cada vez mais cerrando suas portas.
Sei lá, acho que essa discussão sobre os Creative Commons tem a ver com essa outra, que me inquieta bastante: a de estar infringindo as leis dos direitos autorais.

Explico. Este AcervoHBC tem como objetivo ser um prestador de serviços, colocando em circulação um arquivo que acumulei desde os 15 anos. Ou seja, há 60 anos passados. Lembro quando estendi um caderno pro Luis Carlos Prestes autografá-lo para mim, e ele me deu um bônus de um jornal que o Partido Comunista editava. Lembro também de quando enviei uma maçaroca de livros e discos (muitos de Villa-Lobos) para Igor Stravinsky, que veio ao Brasil para reger o “Baisée de la feu”. Devolveu a encomenda, com um bilhete manuscrito meio malcriado. Será que a família do Strava (obrigado, Luiz Ribeiro) irá me processar se eu colocar isso no meu saite? Ou os possíveis descendentes de Valzinho, um dos mais criativos e modernos compositores surgidos na década de 1930, ao lado de Custódio Mesquita e Garoto – para ficarmos apenas em dois exemplos? Detesto infringir as leis. Mas confesso que leis injustas tem que ser debatidas à exaustão.

Tenho propagado por aí um bordão: “Cultura tem que circular”. O nosso saite tem esse objetivo, escarafunchar meus arquivos e colocar em circulação todo e qualquer tipo de informação.

Levei essa questão para alguns amigos meus, inclusive Antonio Adolfo, que me sugere obter autorizações dos personagens que compõem meu acervo. Mas esqueci de dizer que são por enquanto 10.000 itens, que tendem duplicar ou triplicar num futuro próximo.

Não há meio termo para essa discussão. Ou bato nos túmulo de Radamés, Valzinho, Elizeth, Luzinho Eça, Caymmi, Tom Jobim e centenas de outros quase contemporâneos meus para solicitar a seus herdeiros autorização para divulgar o que esses artistas nos legaram e que as rádios e televisões deixaram fora de circulação?

Uma atitude mais drástica seria encerrar meu saite, até que uma lei – ou um conjunto de leis – ponha ordem nesse galinheiro.

Quanto à Ana de Hollanda, hoje Ministra, dou meu apoio total por ter metido a mão nesse vespeiro. Para mudar as regras do jogo, há que enfiar as mãos no lodaçal. Águas turvas nunca foram boas conselheiras.

Que essa discussão envolva toda a sociedade de músicos e autores que fazem a nossa música, que produzem a nossa cultura. Num inevitável e sadio confronto de posições e idéias, há de surgir uma solução que contemple não apenas Creative Commons ou as atividades na Internet – porque o mundo virtual nos reserva outras surpresas, outras mídias que já estão em desenvolvimento – e para elas devemos estar preparados.

Com o universo virado de pontacabeça com essas novas tecnologias, nada mais natural que essa discussão ganhe novos olhares, sem que se perca de vista que todas essas celeumas envolvem um bem imaterial inestimável, que é a nossa cultura. Somos parte dela.

O foro para essas discussões é um Ministério próprio que é sustentado por todos nós, contribuintes, e por uma legião incalculável de artistas que geram lucros culturais e também pecuniários. E quem fornece essa matéria-prima não pode ser ignorado.

Mas sem deixar de lado uma questão fundamental: a informação tem que circular, a cultura tem que circular, e o artista precisa circular não apenas virtualmente.

É hora, pois, de discutir o mercado de trabalho.

SEM MUDAR DE CONVERSA

Claro que dou o braço a torcer. Às vezes fico olhando a vida pelo retrovisor e não reparo nas buraqueiras que o tempo vai inaugurando nas estradas que percorro. Também me vejo reprisando velhos conceitos, ignorando a ampulheta que, na minha frente, me alerta: “os tempos mudaram”; “os tempos são outros”.

Mas é bom que, pelo menos, sejamos nós mesmos diante da mudança dos ventos. Caso contrário, corremos o perigo de sermos meros passageiros, e não os condutores desse bonde que de quando em vez ameaça escapar dos seus/nossos trilhos.

Tampouco menospezo aqueles que tecem, bordam, cerzem, chuleiam e ainda fazem remendos ou pregam botões enquanto se equilibram nos trapézios e tocam flautas e harpas ao mesmo tempo. Invejo, com o mais torpe sentimento de inveja, aqueles que opinam sobre tudo e sobre todas as coisas, mesmo sem sabê-las, mas cuidando de expelir inebriantes nuvens de fumaças multicoloridas que desviam nossos olhares para a fantasia esfrangalhada, cheia de remendos que, à distancia, não percebemos. Essa tal versatilidade me encanta durante algum tempo, sim, mas evito falar de coisas que não conheço, que não me deram intimidade para tratá-las.

Todo esse preâmbulo (ou prolegômanos, se preferirem) é porque o assunto da moda, os Creative Commons, é algo que não domino. E sobre eles falei prum jornal de São Paulo, e vi que se armou uma arena – e, igual a Joyce e ao contrário de Caetano, estou fora de certas polêmicas.

Aí pego o fio da história que desejo contar.

Durante algum tempo exerci a função de oficineiro na Escola Portátil de Música. Não, não havia o caráter formal de uma aula. Oficina de Coisas foi a designação menos pretensiosa que encontrei, e sintetizava a idéia básica: informar e retrabalhar informações diversas junto aos oficinandos. Coisa simples. Levava um dos vídeos de meus programas na ex-TVE (atualmente a sucateada TV Brasil, tal e qual a TV Cultura, em processo de desmanche) e os exibia, provocando comentários.


Devo a Aracy de Almeida e Radamés Gnattali ter aprendido a dar um rumo àquelas “aulas”. Nelas, trabalhava com “estranhezas” (não confundir com exquisitices), que me serviam para conexões as mais audaciosas. Exemplo: Aracy, minha doce Araca. A voz anasalada, timbre raríssimo, dicção perfeita, voz louvada por seu companheiro de mesa na Taberna da Glória, Mário de Andrade. “Era um matusquela. Bebia pra cacete”. O depoimento está lá, empoeirado e engavetado nos arquivos da TVE, num de meus programas. E ela declamando Augusto dos Anjos, falando de sua turma no Vilarino (Antonio Maria, Vinicius, Di Cavalcanti, Fernando Lobo, Rubem Braga), e contando um episódio ocorrido entre Goethe e Schopenhauer, diante de uma vitrine cheia de badulaques numa fria madrugada de Viena. Estranhezas, para muitos que não a conheciam. E, de alguma forma, foram buscar conhecê-la.

Em primeiro lugar, por que Aracy de Almeida? O mito sobrevivia na memória coletiva graças à sua atuação como jurada no programa do Flávio Cavalcanti. Ela era escrachada e carregava no azedume em seus comentários críticos. Ficou, de Aracy, essa imagem turrona – que a Internet não pára de circular. Da cantora, ouso dizer: nada ou pouco se sabe.

De Radamés, o que posso dizer é que vivia quase de forma sedentária, aguardando que a TV Globo, que o mantinha na folha de pagamento, o escalasse para um programa. Lembro de um “Fantástico”, se não me falha a memória: ele embecado numa casaca branca acetinada, regendo uma orquestra. Nenhuma informação relevante, que eu me lembre, na legenda do “clip”. Quando, em 1979, se juntou à garotada da Camerata Carioca, graças a Joel Nascimento, houve uma espécie de ressurgimento do Maestro. Aquele senhor de cabelos brancos, à frente da meninada super talentosa, mexeu com os esquemas da época. Havia, provaram, um espaço para a música de qualidade. E o resto é história.


Radamés saindo pelo Brasil afora através do Projeto Pixinguinha, lotando os teatros, e logo repartindo a gravação de um CD com o violão poderoso de Raphael Rabello, e fazendo o que mais gostava: ir ao “Lucas” tomar um chopinho com seus mais recentes e jovens amigos e admiradores. Lembro que estava em sua casa, ele ensaiando com Raphael, quando apareceu Tom Jobim. Sentamo-nos no chão, mas fora da salinha de ensaio – onde havia um piano de armário. (Não se espantem: o piano do Maestrão não era de cauda). Dali, saímos os quatros, capitaneados por Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim para devorar umas deliciosas moelinhas num pé-sujo que ficava nas imediações da casa do Maestrão. Isso eu vi, disso participei. Não minto.Tom venerava Radamés.

AONDE QUERO CHEGAR?

À Internet, onde estamos navegando agora. Eu, você e não sei quantas pessoas mais. Há umas três décadas a discussão que nos interessava era a moralização do sistema que arrecadava e distribuía os chamados direitos autorais – assunto atualíssimo, que está em pauta. O sistema antigo era pontuado na ponta do lápis, de há muito já existia o chamado “jabá” nas rádios (a televisão já chegara, ditando novas regras), e vivíamos à sorrelfa em termos de grana.

Eram muitas as sociedades arrecadadoras, e a uma delas fui levado por meu parceiro Pixinguinha. Iniciante na música (estávamos na década de 1960), desconhecia completamente os mecanismos que regiam a arrecadação e distribuição de tais direitos. E quase nessa mesma época, estimulados por Tom Jobim, entregamos nossas obras para serem administradas por uma editora considerada, até então, idônea. Fomos posteriormente lesados, Tom inclusive.

Podemos, dentro do nosso fértil imaginário, voltar ao bairro do Estácio nas décadas de 1920/1930, quando Chico Alves e Mário Reis iam “comprar” sambas de Noel e Ismael Silva e outros bambas. Nelson Cavaquinho também vendia suas composições. Era uma prática na época. As editoras que iam surgindo acabaram por diminuir essa prática, substituindo-a por outros, nem sempre lícitas. E nós, autores, sempre nos ferrando.

Éramos, então, um bando de ingênuos. Conforme a ótica de cada um, uns utopistas e sonhadores que usavam pensar uma mudança e moralização de metodologia do sistema então vigente.

Não levávamos em conta, todos nós, que estávamos cedendo a terceiros uma parte, 1/3 da nossa criação, através de um instrumento chamado “cessão de direitos”. Descomplicando: se Mauricio Tapajós e eu entregássemos à editora uma determinada obra, ela ficava proprietária eterna de 33,33% (ou 33,34%) de nossas composições. E só poderíamos gravá-las se fossem editadas pelos grupos editoriais ligados à sociedade a que pertencíamos. No nosso caso específico, a SBACEM.

Complicado? Era, e muito.

E AÍ VEIO O ECAD

Descomplicou bastante, quando da fundação do ECAD (Escritório Central Arrecadação e Distribuição). Informatizado, o sistema tornou-se mais transparente – e nem por isso menos vulnerável. Assim como no futebol, no carnaval e outras atividades de entretenimento, ainda existem focos que persistem em nublar uma visão que parecia ganhar contornos mais nítidos.

Chiquinha Gonzaga, há uns 100 anos, liderou um movimento em defesa dos direitos autorais. Já era uma velhinha quando acendeu a fogueira da discussão. A partir daí, seu estandarte foi parar um outras mãos, chegando até nossos companheiros da Amar-Sombrás, que em 1976 resolveram enfrentar o monstro.

Contextualizemos. Quem não viveu aquela época estranharia um bando de jovens (e também jovens senhores) enfrentando, em pleno regime militar, as máfias que dominavam as áreas do direito autoral. Sempre o Aldir (Blanc) lembra nosso Mauricio Tapajós, mas não posso deixar de também citar Gonzaguinha, Vitor Martins, Gutemberg Guarabyra e, vamos ser sinceros, quase toda a classe artística que, coesa, entrou na briga.

Quando pensávamos navegar em mares menos tumultuados, vem a novidade: a Internet. Aí tudo recomplicou bastante.

INTERNET

A Internet, hoje, é um espaço de ninguém. Ou um espaço para todos. Um macro e imaginário antigo bairro do Estácio, mas online. Basta não ser uma anta cibernética como eu para você encontrar coisas inimagináveis – e tudo isso “de grátis”, como diz o bordão popular.

Por outro lado, defendem alguns amigos, ela, a Internet, tornou-se um espaço democrático – onde você pode divulgar o que quiser, desde uma composição inédita (pergunte antes ao seu parceiro se ele concorda...) até uma orgia que uma câmera indiscreta flagrou entre quatro paredes.

Confesso a vocês que, pondo meus temores (os tenho!) de lado, me compraz (que horror!) encontrar um take da Isaurinha Garcia sendo entrevistada por mim em 1977, na TVE. Chamo a isso democratizar a informação, fazendo-a circular. Direitos à parte, somos um país desmemoriado culturalmente. Já disse isso de forma um pouco mais inteligente, mas não faz diferença. Sim, sim: dizia que a tal memória nacional era tratada pelos agentes culturais como uma velhinha debilóide e esclerosada, carente de ser asilada – e falo de asilo, de exílio compulsório, de jogá-la ao lixo, como se lixo fosse.