sexta-feira, 28 de maio de 2010

Paulinho da Viola, Walter Wendhausen e Luiz Canabrava

As coisas estão no mundo
Só que eu preciso aprender
“Coisas do mundo, minha nega”

Lembro que, nas décadas de 40 e 50, aqui no Rio de Janeiro, era moda freqüentar a casa do escritor Aníbal Machado, pai da teatróloga Maria Clara (“Pluft, o fantasminha”) de igual sobrenome.

Me lembro, e muito muito vagamente, de ter passado por lá. Tertúlias, saraus, essas coisas andavam na moda. Algumas pecavam pelo excesso, com declamações que inevitavelmente desaguavam n’ “O Corvo” de Poe. Eu mesmo, encarapitado numa cadeira, dei os meus vexames iniciais num sarau promovido no bairro da Glória por um moço chamado Burlamarqui. Perdoemos aquele garoto de uns 5 anos, mas já afiado no “Periquitinho verde” do Nássara.

A formação intelectual de muita gente se deu assim, nesses convescotes nada convencionais. Cheguei a formar um duo viloão-violino com meu amigo Luiz Carlos de Castro, para entreter um bando de desocupados que passavam pelos salões da Baronesa. A Baronesa era um funcionário graduado do Itamaraty. Ali se tocava, ali se comia e bebia, dali a gente se escafedia na célebre “hora da valsa”. Prefiro não entrar em detalhes.

Walter Wendhausen, Paulinho da Viola e Luis Sérgio Bilheri Nogueira

Quem não ouviu falar do Sábadoyle? Mas ali era uma concentração de pensadores peso pesados, como Drummond de Andrade e Pedro Nava. Eram reuniões intelectualíssimas, como as que, até pouco tempo, nosso Oscar Niemayer promovia em seu apartamento para discutir filosofia, física quântica e coisas afins.

Em São Paulo, Mário de Andrade era o centro de atenções na célebre casa da rua Lopes Chaves – o endereço intelectual mais célebre na desvairada Paulicéia dos anos 30/40. O carteiro despejava toneladas de cartas por dia, e até hoje não sei como o poeta dava conta do recado.

Contam (“O leitor apaixonado”, de Ruy Castro) que era assim, também, na casa de Gertrude Stein em Paris. Lá você esbarrava em Hemingway, Picasso, Cézanne, Matisse, Hemingway, Ezra Pound, T.S. Elliot...

Os grupos iam nascendo e se informando desse jeito, se alimentando dos contatos riquíssimos como aqueles proporcionados à gente da bossa-nova. João Gilberto, dizem, ia pouco por lá. Mas quando ia, que festa! era um passando o violão pro outro, tentando copiar o acorde inventado pelo Mestre. Eu já era taludinho, naquela época, quando a bossa-nova abriu seu berreiro (seus sussurros, aliás). Falo do finzinho da década de 50, quando 99% das pessoas interessadas em música popular se apaixonaram por suas invenções. José Ramos Tinhorão escovava os dentes com cicuta, já nessa época, para esfolar Tom Jobim em seus raivosos comentários críticos.

Mas voltemos ao apartamento de Walter Wendhausen e Luiz Canabrava, ambos pintores vanguardistas, mas que exerciam seus ofícios ilustradores no departamento de publicidade do Magazine Mesbla (Mestre et Blaget?), com desenhos academicíssimos de fogões, lamparinas, serrotes e o que mais se possa imaginar. Ossos do ofício. Eneida, Leonardo Villar (bem antes, portanto, de estrelar o “O pagador de promessas”), Van Jafa, Lucio Cardoso e sua irmã, a também romancista Maria Helena Cardoso, Harry Laus, quem mais? Muita gente. Grana pouca, cada um levava sua birita, ou ia pendurar sua conta com o Fernando, ali próximo no Lamas (ainda no largo do Machado).

Vamos nos situar: o ano, 1951. O apartamento era na Dois de Dezembro, meio Catete, meio Flamengo. Rio de Janeiro, portanto. Milhares de discos de 78 rotações, e havia de tudo: Aracy de Almeida, Louis Armstrong, Piaf, Pixinguinha, Fats Waller. Ecletismo musical era ali mesmo. E bebia-se Drummond e embriagava-se com Manuel Bandeira (com a poesia deles, esclareço, que desconheciam nossas existências). Braque, Picasso, Chagall, Modigliani. “O Encouraçado Potenkin” (só iria ver o filme muitos anos depois), as vanguardas teatrais ensaiando seus passos, as vernissages concorridíssimas – nada nos faltava em termos de informação. Tallulah Bankhead ou Erich Von Ströheim, Marlene Dietrich ou as “expansions” de César. Tudo praticamente tridimensionado, porque imaginação é o que não nos faltava. A grana?, curtíssima. No Lamas e no Bar Recreio nos abastecíamos de cerveja ou gin tônica, e nos deliciávamos vendo a Divina Elizeth entrar na companhia de seu namorado Ewaldo Ruy e, pasmem!, Ary Barroso.

Todo esse preâmbulo é para contextualizar a época virtual em que vivemos, escravos da Internet, e onde tertúlias e saraus saíram de moda ou se realizam um pouco às escondidas.

Fui procurado por um jovem pesquisador, a quem foi encomendado um livro sobre Luiz Canabrava. Ora, direis, quem hoje ainda lembra de Canabrava e Wendhausen? Mas eu que os freqüentei, que com eles convivi, posso atestar: a casa dos dois equivalia a um centro cultural – e acho que Paulinho da Viola deve pensar a mesma coisa.

O artista plástico Luiz Canabrava (c.1960)

Porque nos conhecemos, primeiramente, nos célebres saraus de Jacob do Bandolim, naquela casarona em Jacarepaguá. Em que anos estamos? Possivelmente 1955/56. Ele, Paulinho, na companhia de seu pai, o violonista Benedito César Faria. E eu municiando aqueles saraus com as cordas mágicas de meus amigos Maria Luisa Anido, Oscar Cáceres, Nicanor Teixeira, Jodacil Damasceno e um então menino chamado Turíbio Santos.

Paulinho começava a escrever em sua história num bloco de Botafogo, eu morava no bairro da Glória, já pertinho da Taberna.

– Olá, como vai?
– Eu vou indo, e você?

E é claro que não foi bem assim. Ele trabalhava num balcão de um banco onde eu ia pagar contas, um olhou pra cara do outro – a gente já se conhece, né? – e nos conhecíamos sim das rodas de choro na casa de Jacob. Conhecíamo-nos “de vista”, como se diz comumente. A partir daí nos tornamos amigos e, acho eu, parceiros.

Parceiros também no convívio com Walter Wendhausen, que morava com Luiz Canabrava – ambos desenhando anúncios de dia, e nos fins de semana continuavam pintando, inclusive o sete. Porrancas federais.

Vamos, agora, nos mudar para Copacabana – década de 60, nova residência do Walter. Em frente, moravam Toninho e Liana Ventura. Mais tarde, mas muito mais tarde, a filha do casal, Lianinha, se casaria com Raphael Rabello (que viria a ser cunhado de Paulinho, que desposou Lila, que tem o poeta Paulinho Pinheiro como cunhado, casado que é com Luciana Rabello, a Magnífica). Mas não vamos desfolhar o calendário antes do tempo.

Avenida Nossa Senhora de Copacabana, perto da Duvivier, que apartamentão! Liana, filha do senador Dix-Huit Rosado, e Walter já morando num prédio que dava de cara com o do casal Ventura. Para estabelecer amizade eterna, com juras de amor ad infinitum, foi um pulo. “Marreco” era como Liana apelidou Walter. Não me perguntem pela foto em que aparecem Clara Nunes e Martinho da Vila numa daquelas feijoadas memoráveis promovidas pelo casal. Não saberia precisar a data.

Mas, e pontuando apenas essas lembranças: a casa dos Ventura era um território livre, mas não com as características da casa de Aníbal Machado ou da antiga residência de Walter. Alguns remanescentes, como Harry Laus e Eneida (sempre com um copo de uísque à mão) permaneceram. Grande Eneida que lavrou seu memorável epitáfio: “Essa mulher nunca topou chantagem”. Na época do golpe de 64, Wendhausen arrumava as trouxas e ia dormir na casa da escritora, temendo que ela fosse presa. Iria junto. E seriam inevitavelmente soltos. Ninguém iria agüentar e esbórnia que certamente promoveriam.

Fiquemos, pois, naquela década sessentina, Paulinho já amigo e admirador de Walter. Lembro do vaticínio de meu amigo:

– Paulinho vai ser um dos grandes.

O “Rosa de ouro”, de 1965, iria confirmar a previsão. O “Rosa” tinha assento vitalício para Wendhausen na platéia do Teatro Jovem.

Bem, retomemos o fio da história. O jovem candidato a pesquisador, encarregado de biografar Canabrava, descobre meu e-meio e me obriga a escavoucar territórios que julgava demolidos, execrados, expulsos de minha lembrança.

Claro, o assunto me interessa. Tenho, às pencas, quadros de Wendhausen e Canabrava – e lembranças vivíssimas daquela época, para mim, de ouro. Imagine, em 51, saindo das calças curtas e descobrindo sua sexualidade, e aluno da vizinha Escola Amaro Cavalcanti (onde mais tarde Paulinho também estudaria) me descobrir habitando o mesmo Olimpo de pessoas que só conhecia à distância. Pois tive que fazer um processo de regressão, pra responder ao questionário que me foi enviado: onde, quando, como conheci Canabrava.

Nesse troca-troca de e-meios, meu jovem interpelante vai catando as pistas que lhe dou, vasculha nosso saite, encontra fotos de Canabrava, escarafuncha escaninhos empoeirados – e se deslumbra com o fato de Paulinho da Viola ter se inspirado no livro “Por onde andou meu coração” para compor o “Foi um rio que passou em minha vida”, numa época em que embaralhei sua vida artística com um samba-exaltação, e qual?, “Sei lá, Mangueira”. Ele portelense, eu um verde-e-rosa arrastando-o pra um samba em homenagem à escola oponente. E onde conheceu Maria Helena Cardoso, Elena, irmã de Lúcio, autora do livro? Na casa de Walter e Canabrava, suponho eu. (O jovem é também biógrafo de Lelena e desconhecia esse fato).

Todos nós somos, um pouco, frutos de uma época que, igual à de Aníbal Machado ou Gertrude Stein, os poetas músicos pintores se alimentavam de pensamentos, desovando em matéria-prima rara aquilo que nossos sábios mentores, sem saberem-se mestres, nos ditavam.

Forneço esse resumo porque, cada vez mais, me sinto fazendo uma viagem regressiva ao apartamentinho de Wendhausen e Canabrava, que tanto e tanto me ensinaram.

Quando vejo a meninada da Escola Portátil de Música, e as experiências relatadas por eles e seus Mestres Oficineiros, percebo que cada um teve fomentada suas vocações pos wendhausens e canabravas. E, independentemente das obras artísticas que nos legaram, advertiram-nos o quanto é preciso aguçar a arte de prestar atenção.

Meu jovem pesquisador, aspirante a biógrafo de Canabrava, me fez encontrar na Internet essa pérola: “Como diria o artista Walter Wendhausen, o mundo está aí, com tudo que tem de belo, para ser visto – basta saber olhar”.

Paulinho da Viola, com sua percepção aguda e um verso extraordinário, talvez nem tenha lido essa declaração de Wendhausen – mas que estava na essência de nossa relação com aquele artista. Aliás, com aquele grupo de artistas.

Afinal, as coisas estão no mundo – bastando-nos apenas apurar a arte do apercebimento.

*** *** *** *** ***

NOSSO SAITE
Esta crônica nasceu na necessidade de confessar o que se segue: o nosso saite, eu o queria com esse perfil informador. Ao estabelecer contato com esse jovem biógrafo de Canabrava, pude atestar a qualidade dos serviços até aqui prestados. Nenhum mérito meu, diga-se de passagem. Costumo me autorrotular uma anta cibernética, de tal forma me atrapalho com o manuseio do teclado do computador. Portanto, a permanência do nosso saite, e uma mudança de seu perfil, é coisa que levará algum tempo. Mas aproveito para abraçar meus companheiros, citados todos eles nos créditos, que construíram (e continuarão construindo) esse portal, com o perfil cada vez mais acentuado de um prestador de serviços – como acaba de provar o jovem pesquisador que me fez viajar em torno de um grande artista plástico, Luiz Canabrava, cuja memória quase se viu reduzida a cinzas.

Quase porque muitas obras suas, e de Wendhausen, estão em coleções particulares. As capas que Canabrava fez para os Lps “Muito Elizeth” e “É tempo de amor” (Dalva de Oliveira), todas debruçadas no abstracionismo, são antológicas, assim como aquela construída por Wendhausen para o “Elizeth sobe o morro”. Capas de livros? Inúmeras. Durante algum tempo Canabrava ilustrou os livros de Dinah Silveira de Queiroz, enquanto Wendhausen exercia essa mesma arte como capista de livros e discos meus. Até o cardápio do Zicartola tem a colaboração gráfica de Walter, assim como Luiz foi além – revelando-se como excelente contista. Ambos, aliás, elaboravam textos deliciosos – e Wendhausen chegou a aventurar-se na área de crítica de música. E todos nós, claro! frequentávamos os Bailes do Pierrot, idealizados por Eneida.