sábado, 21 de maio de 2011

Pinga fogo


Oneyda Alvarenga

Começo falando da Prof. Oneyda Alvarenga, a grande discípula de Mário de Andrade. No calendário caprichosamente produzido pelo Museu da Imagem e do Som, constato que 2011 é um ano repleto de centenários (*) e,  entre eles, o da Profa. Oneyda.  Não fui generoso, em meu último livro  – “Áporo Itabirano” (Imprensa Oficial, 2011) – ao esquecer de narrar nosso encontro em São Paulo, em 1983, ano em que celebrávamos os 90 anos de seu/nosso Mestre Mário de Andrade. E ela, sua discipula dileta – e recomendo que se leia “Cartas, Mário de Andrade Oneyda Alvarenga (Liv. Duas cidades, 1983). Devo esse encontro à Telê Porto Ancona Lopes e, também, a Flávia Toni, ambas do IEB, Instituto de Estudos Brasileiros, que tem o privilégio de abrigar todo o acervo de Mário. Fui visitá-la em São Paulo, ela já doente (e doente terminal, sabia-se), mas me recebendo com uma generosidade que, presumo, aliás tenho a certeza, tenha sido herança de seu Mestre. 
Tarde inesquecível. Perguntei a quantas andava o “Dicionário musical brasileiro” idealizado por Mário e entregue a ela para ser finalizado. Mário faleceu em 1945, e o “Dicionário” era um monte de envelopes cheio de verbetes, nada mais do que isso. Que não se despreze, entretanto, aquele espólio cultural  construído dia a dia, fruto de uma quase obsessão. O Dicionário estava praticamente pronto, faltando apenas fazer uma editoração da pesquisa.  Não havia mais verbas para remunerar a equipe que iniciara o trabalho, me informou a Fessôra. E ela mesmo se sentia sem forças para retomar aquele legado que o Mestre lhe outorgara. Nada prometi, mas no Rio de Janeiro fui à busca de patrocínio, e o consegui. O Dicionário foi, enfim, finalizado – mas a Professorinha Oneyda não chegou a folheá-lo. Lembro que, à véspera de seu desaparecimento, Telê me telefona – e lá fui eu me despedir da Fessôra. Levei flores ao seu leito no hospital, ela já me parecia ausente. Voltei para o Rio e, no dia seguinte,  soube de sua partida. Comentei com Flávia Toni da minha tristeza em não ter sido reconhecido. Mais ou menos ela me narrou que, depois de minha visita, d. Oneyda acordou e, cercada de flores, respondeu à Flávia que lhe perguntou quem as havia trazido. “Foi o Hermínio”. Que privilégio, Deus meu, havê-la conhecido.

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Hipocrisia    

Despindo os véus da hipocrisia e contra todas as barreiras que encontraria no Congresso (as bancadas religiosas, sobretudo) – foi reconhecida, pelo Supremo Tribunal Federal,  a união entre pessoas do mesmo sexo. Há, imediatamente, que se dar alguns passos adiante: a penalização da homofobia e uma discussão, igualmente despida de hipocrisias, sobre a descriminalização das drogas.  Falo isso com absoluta conhecimento de causa: sou um dependente químico. Não consigo dormir sem o uso de comprimidos tarja-preta, igualmente receitados junto a outros remédios contra uma depressão compulsiva. Além do mais, gosto de beber meu vinho. Os comprimidos tarja-preta os adquiro nas farmácias mediante requisição médica. A fiscalização, louve-se, é rigorosa. Meus vinhos os adquiro e os bebo publicamente, sem que me exijam nada – além do pagamento cash ou via cartão de crédito.  Mas o meu vinho, o uisquinho de Vinicius ou a cachacinha de Lula – são drogas. Repito: drogas.

Fume à vontade, beba hectolitros de álcool, bata com seu carro, mate uma porrada de pessoas – mas não será por falta da absurdamente hipócrita advertência das indústrias que fabricam essas “drogas sociais”, advertindo nas propagandas: “o cigarro pode causar câncer”. Ou então, “beba moderadamente". "Se beber não dirija, se dirigir não beba”. Ou seja, a indústria tabagista, assim como a ruralista, a evangélica, a do tráfico, age com extrema sapiência ao não querer uma discussão aberta sobre o assunto, fugindo ao debate aberto que, já se vê pelos noticiários, está passando da hora de ser discutido. Já fui tabagista, mas porque achava elegante tragar um cigarrinho através de uma piteira longuíssima, coisas que aprendemos vendo os filmes produzidos por Hollywood e logo copiados pela nossa indústria tupiniquim.  Mas toda essa drogalhada é reconhecida pela sociedade e amplamente amparada pela publicidade que escancara o prazer de seu uso

Converso essas coisas aqui porque me assusta, e me assusta muito, o aparecimento, na área de consumo de drogas, de mais um sub produto da cocaína, mais alucinógena e dependencial do que o crack, e ainda mais barata, e por isso mesmo de mais fácil circulação entre a garotada atraída para seu consumo. Oxi seria o seu nome. Você, que circula pelas ruas, já deve ter flagrado um monte de crianças e adolescentes, e também alguns adultos, consumindo essas drogas. Esses dependentes terão, sabe-se, pouco tempo de sobrevida ao consumo que fazem dessa drogalhada que chega pelas mãos dos traficantes. E, para obtenção dessas drogas, vendem seus corpos  e almas e sonhos – se é que podemos falar em sonhos  quando vemos esses jovens suicidas serem levados ao sacrifício sob o silêncio de parte da sociedade e dos poderes que a representam. 

Seria leviano afirmar que tal silêncio abriga uma certa indiferença ou mesmo permissivividade por parte dos órgãos que deveriam cuidar do assunto. Porque só despertamos para a realidade quando somos encostados no muro,  ameaçados por um canivete afiado, uma faca enferrujada ou até mesmo um revolver de brinquedo.

Não há porque discordar do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: há que se trazer essa discussão não só para os fóruns adequados, mas com a participação ativa de toda a sociedade. Mas que esse debate não se dê em meio às  ondas de voluptuosa hipocrisia que costumam cercar essas discussões. Duvido, e duvido muito, que alguém fique indiferente ao noticiário dos jornais, sobretudo os televisivos, falando sobre as cracolândias. Não tenho filhos nem netos consangüíneos, mas não preciso te-los para sabe-los – parafraseando um verso de Vinicius de Moraes.

Sou contra a pena de morte, mas sou a favor de se classificar, de se tipificar  como crime hediondo, passível das penas mais severas, a quem induz uma criança ao uso dessas e outras drogas. Elas, essas drogas mais recentes e baratas e de mais rápido efeito, mais do que  degradar, fazem-nas  prostituir-se, induzem essas crianças à morte, a um tipo de suicídio que nem ela mesmo tem consciência de que o está praticando.

Sem hipocrisia, Presidenta. Temos ministérios demais, e políticas de menos. Senhores parlamentares, juristas, jornalistas, compositores, gente de todas as cores (como no belo samba de Lupicinio) – há que se unir para uma discussão sobre essa praga que dizima a vida de milhares de crianças e adolescentes.

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A Ministra

Existe alguma dúvida de que a ministra Ana de Hollanda está sendo fritada, colocada como carne de segunda num espeto de churrascaria chinfrim, assada como uma posta de acém colocada na brasa? Há quem duvide disso? É o chamado “fogo amigo”, partido de agentes culturais insatisfeitos ou mesmo de parte da classe artística que ainda não conseguiu a voz sussurrante da Ministra. Mas que ela aprenda também a contrapor-se a esse fogo amigo com ações reais: a abertura de mercado de trabalho, por exemplo. E a todos nos se recomenda uma certa paciência com a discussão sobre o uso da Internet, e com todas as mídias que estão sendo colocadas no mercado – e que fazem uso da música, dos textos, de tudo aquilo que produzimos. É um fenômeno muito recente, e que jamais alcançará contornos definitivos. A tecnologia avança de uma forma assustadora.    

(*) Peterpan, autor de “Se queres saber”, sucesso original de sua cunhada Emilinha Borba, e depois regravado esplendidamente por Nana Caymmi; o pintor argentino Carybé, que adotou a Bahia como berço, e que ilustrou obras de Garcia Márquez, Mario de Andrade, Pierre Verger e, sobretudo, de seu grande amigo Jorge Amado. (Tenho belas lembranças de uma verdadeira maratona que fizemos por Salvador, ele mais Jorge, Caymmi e eu – acho que já contei essa história num de meus livros); Assis Valente, outro bahiano porreta, consagrado por Carmem Miranda, e nascido em Santo Amaro da Purificação; Nelson Werneck Sodré, e há que não esquecê-lo por ter-nos legado a “História da Literatura Brasileira”; Mário Rossi, autor do “Beija-me”, gravado inicialmente por Ciro Monteiro, e co-autor do belíssimo “Cidade do interior”, de parceria com Marino Pinto, consagrado por Elizeth Cardoso; Paulo Gracindo, nosso genial Odorico Paraguaçu, personagem criado por Dias Gomes – sem esquecermos que fazia dupla com Brandão Filho no “Balança mas não cai”; Anacleto Rosas Júnior – dou um doce para quem souber quem foi. Autor de “Três boiadeiros”, “Casinha branca", “Rancho vazio” (não confundir com "No rancho fundo"); Antonio Almeida, autor de sucessos memoráveis. Fiquemos com as figuras femininas que exaltou: “Juraci”, “Doralice”, “Helena, Helena”. E quem não sabe cantarolar o “A sudade mata a gente”? Teve inúmeros parceiros, entre eles Braguinha, Mario Lago, Alberto Ribeiro; centenário também de Nelson Cavaquinho, cujo primeiro registro de voz-e-violão, ah! não me tirem esse privilégio de tê-lo feito no LP “Elizeth sobe o morro” (1965). Orgulho-me, ainda, de ter sido seu parceiro; Mário Lago, também fazendo 100 anos, uma das fiuras antológicas da cultura brasileira. Esplêndido letrista, fantástico memorialista. E, enfim, a Prof. Oneyda Alvarenga. Quase todos os conheci pessoalmente. O tempo, enfim, não pára – já dizia Cazuza.