segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Confessando (também) meus fracassos

Quero confessar, o mais descaradamente possível, que vou plagiar o antropólogo Darcy Ribeiro. É que ele, ao receber o titulo de Doutor Honoris Causa da Sorbonne, em 1978, resolveu escancarar suas desilusões políticas e culturais, num caudaloso discurso – magnífico! – que, infelizmente, não dá como reproduzir aqui. E justifica: “em lugar de louvações me pus a lamentar, modesto, os fracassos de minha vida inteira”. E explica: “falsos fracassos, logo se vê. Modéstia mais falsa ainda. Num golpe de mágica assumi, imperialmente, os fracassos do Brasil na luta para apossar-se de si mesmo, fazendo deles fracassos meus. Meus e dos brasileiros todos, disse eu lá no heráldico salão das grandes escadarias”.


Na impossibilidade de transcrever o discurso, esclareço que o Educador não deixou barato. Expôs sua trajetória, mas ressaltando que quase todas suas iniciativas nas áreas de educação e antropologia foram acompanhadas de enormes desilusões. Lembremos que Darcy criou a Universidade de Brasília, ao lado de Oscar Niemayer e Lucio Costa, colaborou com os Irmãos Villas-Boas na criação do Parque Indígena do Xingu, foi viver suas experiências entre os índios, foi Secretário de Estado, depois Ministro da Educação. Anisio Teixeira o aproximou da temática pedagógico-educacional, semente dos futuros Cieps em sua concepção original: a criançada entrando nas escolas, estudando, fazendo esportes, se alimentando e voltando para casa no final da tarde. Depois o Golpe Militar de 64 cassou seus direitos, e foi fazer política e pregar cultura e educação pela América Latina. Seus “fracassos” se localizam em áreas que sofreram regressão ou abandono ou interesses políticos – como é o caso específico dos Cieps.

Admirável a personalidade do educador, de palavrório solto – e é lá. No admirável “Testemunho”, recém editado pela EUB, que vou catar um trecho delicioso: “Falar de mim mesmo é a tarefa que mais me agrada e gratifica. Todo entrevistador de rádio, jornal ou televisão sabe que nem é preciso me fazer pergunta; basta ligar o gravador e me deixar falar, que falo. Incansavelmente. Para mim, pelo menos”. Grande Darcy!

Finjo que estou na Sorbonne, me reduzo à condição de um simples ativista cultural brasileiro, e aqui venho lamentar alguns dos fracassos colhidos ao longo de quase 75 anos de vida, 2/3 dela no ofício espinhoso de jardineiro de sonhos e utopias.

CLEMENTINA DE JESUS

Há quem viva navegando na tênue nuvem do sucesso, com memória superseletiva que abomina lembrar uma outra escadaria, maior do que a de Sorbonne de Darcy, aquela que passo a passo, igual aos romeiros da Igreja da Penha, esfolamos nossos joelhos em busca de uma graça prometida. Às vezes, cura de uma doença ou moléstia tão grave que é falta de dinheiro. Mas há quem galgue as escadas para implorar um espaço qualquer num pódio que a indústria cultural reserva para pouquíssimos. “Sucesso, quero fazer sucesso!” – gritam, desesperados (e esfolados).

Vamos, pois, desafiar o rosário. E começando por Mãe Quelé, aproveitando o mote do antropólogo. Dele recolho uma frase admirável: “Clementina (de Jesus) é a voz dos milhões de negros desfeitos no fazimento do Brasil. Poderosa voz anunciadora do brasileiro que, amanhã, se assumirá como povo mulato, mais africano que lusitano”. Fez mais: abriu as portas do Municipal para homenageá-la, embora eu continue achando um equívoco. A imaterialidade do canto de Clementina transcende o patrimônio físico representado por aquele teatro. Se houve alguma simbologia no ato de homenageá-la naquela casa, faltou-me explicação.

Lembro quando o município de Valença resolveu homenagear a memória de Clementina, erigindo um busto em praça pública. Cá estou diante da doce professora Dilma Dantas, então Assessora de Cultura, que veio sem explicar como se daria a inauguração. Expus o seguinte: busto em praça pública só serve pra pombo cagar em cima. Por que não um livro sobre Clementina, para que os jovens pudessem entender a trajetória daquela iluminada personagem valenciana? “Seria caro!” – e expliquei que não, e nos juntamos a Lena Frias, a Nei Lopes e Paulo César de Andrade – e entregamos nossos textos totalmente de graça. E, enfim, o livro foi editado com baixíssimo custo industrial.

Clementina, enfim, foi um dos meus fracassos. A voracidade de alguns herdeiros é bastante conhecida, e os de Clementina não fogem à regra. O livro nunca pôde ser reeditado, assim como os discos de Clementina sofreram uma só reedição, patrocinada pela Petrobras. “Ninguém vai querer comprar”, explicou a gravadora. Há pouco tempo, retribuindo gentileza de Eduardo Escorel que me mandou uma cópia do documentário que fez sobre Chico Antonio, mandei-lhe a penúltima caixa que ainda possuía com dez CDs de Mãe Quelé. Sua memória ficou restrita a poucos.

ANTONIO CANDIDO E SEUS PERSONAGENS SECUNDÁRIOS

Há pouco tempo, e acho que já contei isso aqui, fui assistir a uma palestra do professor Antonio Candido. Era o lançamento da epistolografia de Mário de Andrade com o fazendeiro Pio Correia. O professor foi logo esclarecendo: não gostava de falar dos chamados protagonistas, de resto quase sempre muito conhecidos e incensados. Preferia os “personagens secundários”. No caso, o fazendeiro Pio e o pai de Mário. Deu-se o clarão: minha vida inteira a dediquei a esses personagens marginalizados pelo sistema, e reduzo a lista a Clementina de Jesus e Valzinho para não me tornar (mais) cansativo.

Outro dos meus fracassos eu o relembro em função do esclarecimento prestado por Antonio Candido, e se relaciona à ex-TVE, hoje TV Brasil. Nela produzi centenas de programas, sempre colocando meus personagens secundários em destaque, já que estavam compulsoriamente afastados pelas emissoras de TV, que os desejava mais glamurosos e não necessariamente portadores de conteúdo – pois até hoje a grande maioria das emissoras de rádio e televisão age com esse critério seletivo. Uma das poucas exceções é Cartola, que foi catapultado da obscuridade através de sua genialidade, assim como Pixinguinha. Inquestionáveis, não havia como barrá-los.

Expliquemos o fracasso: mandei carta para Tereza Cruvinel, atual presidente da TV Brasil, denunciando um fato que me prece no mínimo escandaloso. Boa parte do acervo de programas que estava se deteriorando nos arquivos da então TVE foi recuperado graças ao apoio financeiro recebido da Petrobras. Finalizado o trabalho (tenho em mãos a relação do acervo recuperado) todo o material foi devolvido aos depósitos onde haviam mofado. Ou seja: devolvidos ao anonimato.

PROJETO PIXINGUINHA: RELEMBRANDO UMA CAFAJESTICE CULTURAL

Outro fracasso se deu há quase dois anos, quando fui chamado para fazer a curadoria dos 30 anos do Projeto Pixinguinha. Apresentei contraproposta para aceitação ao convite: a reedição de alguns projetos, inclusive o Lucio Rangel de Monografias, e, sobretudo, o Radamés Gnattali – um projeto na época gerenciado por Roberto Gnattali e Luiz Otávio Braga, com edição de discos paradidáticos. Como já foi declarado abertamente na época pela imprensa, fui torpemente enganado. Já havia um projeto de sepultamento do Projeto Pixinguinha, e eu, sem querer, fui chamado solertemente para celebrar suas exéquias. Mais um fracasso.

EVENTO PARA MIM É VENTO, UM ATO EVENTUAL QUE NÃO DEIXA RESIDUOS

Não mudando de assunto, que ele ainda não acabou, quero falar sobre o mercado da música, e de uma multidão de jovens artistas que tentam um espaço nas megavitrines representados pelos teatros municipais e estaduais, que antes abrigaram projetos como o Pixinguinha e o Seis-e-Meia, do Albino Pinheiro. Bom, a prefeitura inaugurou o “Sete em ponto”, semanal, no Teatro Carlos Gomes. O fechamento temporário do Municipal para obras fez com que as agendas dos demais teatros municipais ficassem congestionadas, recebendo a programação destinada àquele templo da música. Tudo bem. Ele vai reabrir, reequipadíssimo. O João Caetano já passou por uma parcial reforma (até com cadeiras para obesos e elevador para deficientes, como ordena a lei). A Sala Cecilia Meirelles vai, enfim, entrar em obras – e tomara que os dois prédios a ela vizinhos sejam igualmente recuperados, com suas fachadas deslumbrantes.

Mas o que anda me incomodando, e muito, é a falta de registro de projetos, programas e eventos da maior importância, que simplesmente caem no esquecimento por falta de um resíduo cultural que ele poderia provocar, se interesse houvesse das telemissoras ditas culturais ou educativas. São espetáculos importantes que, ensaiados durante meses, acabam se perdendo na memória. Dou como exemplo o tributo prestado a Luis Carlos da Vila na Praça Mauro Duarte, no bairro de Botafogo (RJ). Se você perdeu, como perdi, aquele evento, entenderá minha insatisfação. Tudo que não se registra se perde, há anos venho repisando o que tantos já se cansaram de advertir. O lógico é que um dos teatros municipais ou estaduais acolhessem essas propostas e, conveniados com uma rede televisiva federal, municipal ou estadual, fizessem o registro do é-vento, permitindo sua futura acessibilidade por parte do público. Bem, vamos ampliar a queixa: já repararam nos horários tardios em que esses registros (poucos) entram nas grades de programação?

ATÉ SANGRAR

Já havia me aposentado como produtor de discos quando Olívia Hime sugeriu que se produzisse um disco de Áurea Martins. Chamei Zé-Maria Camiloto Rocha para co-produzir o “Até sangrar”, que resultou no prêmio (ex-Tim, ex-Sharp) de melhor cantora de 2009 para Áurea. Desde então, venho tentando abrir um espaço para celebrar essa premiação. Afinal, Áurea só havia recebido um prêmio na vida, quando venceu o concurso “A grande chance”, há 45 anos. Promessas aqui e ali, e nada de concreto. Não, não computo esse desapontamento como um fracasso. Áurea foi consagrada com inúmeras críticas nos jornais, menos, é claro, nas revistas semanais tipo “Veja”, “Istoé’, “CartaCapital” – e façamos justiça à essa última publicação: o Pedro Alexandre Sanches escreveu uma longa matéria sobre o livro que escancara os preconceitos em torno das cantoras negras, mas com um lapso de amnésia indesculpável esqueceu-se, apenas, de comentar que nem ele publicou nenhuma resenha crítica sobre o “Até sangrar” naquela revista.

EM CONTRAPARTIDA...

Não vamos trabalhar com a regra (um mercado musical multifacetado, com os olhos voltados para a cultura descartável), mas lançar também um olhar despreconceituoso e mais atento às exceções dessa regra. Pedi a uma querida ex-aluna da Oficina de Coisas da Escola Portátil de Música, Gabriela Buarque, que me enviasse um texto falando de sua luta para abrir espaço para ela e também para outros novos valores. Vamos lá:

“Semana passada me fizeram uma pergunta sobre os espaços do Rio de Janeiro para novos compositores. Na tentativa de fugir do padrão de resposta “só reclama e não faz nada para mudar” – que vem se multiplicando nos depoimentos de meus colegas de trabalho – comecei a enumerar alguns locais que nos são mais acessíveis. Sem qualquer espanto do entrevistador, depois de três referências, não me recordava de mais nenhum. Raras e preciosas iniciativas como a da ARPUB (Associação das Rádios Públicas do Brasil) devem ser louvadas. A promoção de seu I Festival de Música levou às Rádios MEC e Nacional composições inéditas da nova geração na tentativa de revigorar a canção brasileira que, a esta altura, até ameaça de extinção sofrera. Fico pensando o que seria dos consagrados nomes da nossa música não fossem os veículos de massa da época para divulgar seus trabalhos e incentivá-los através de grandes festivais, das rádios e outras mídias. Interesses políticos à parte, tais manifestações alavancaram fulanos como Chico, Caetano, Gil, Elis, Nara e tantos desconhecidos até então. Sobreviveriam os mesmos nos dias de hoje? O cenário atual, cuja a quantidade de informação ultrapassa a capacidade mínima de absorção e entendimento, vem transformando artistas e suas mais admiráveis peculiaridades em produtos descartáveis e obsoletos a cada segundo que passa. O artista que, há alguns anos, lotava um teatro, por exemplo, atualmente busca soluções de marketing para atrair o público. Nunca foi tão importante a presença de convidados ‘especiais’ e depoimentos de terceiros para agregar valor à sua imagem e, por conseguinte, ao seu CD. É, no mínimo, paradoxal que, diante de tamanha riqueza, não haja interesse público em divulgar e preservar esse material. As salas de concerto do Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil são as choperias cariocas, aonde, eu lhes asseguro, a última coisa que se deseja é ouvir música. É lamentável que parta de nós a defesa e propagação da música popular brasileira."
Gabriela Buarque (16/11/2009)
Claro, o assunto não se encerra aqui. Por uma questão de justiça, temos que louvar instituições que mantém programas culturais em seus calendários. O Centro Cultural do Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o BNDES, a Petrobras, o Sesc e secretarias municipais e estaduais de cultura que administram generosos espaços culturais.

Voltaremos ao assunto.