quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Ataulfo Alves e Sérgio Cabral

Ataulfo Alves

Meu querido Sergio Cabral tem agora seus dias ocupados com a biografia que está traçando de uma figura cheia de nobreza que atende pelo nome de Ataulfo Alves. Vamos ao e-mail que me mandou:

From: Sergio Cabral
To: Herminio Bello de Carvalho
Sent: Sunday, December 14, 2008 10:05 PM
Subject: Ataulfo

No seu acervo, constam três músicas da parceria com Ataulfo: “Armadilha”, “Desvivendo” e “É lixo só”. São graváveis? É claro que são. Beijos. Sérgio.


Tinha por hábito, quase uma regra, a de colocar em cadernos espiralados (e eram quatro) os rascunhos das músicas que compunha com meus parceiros. Isso não aconteceu, por exemplo, com a letra do choro “Noites Cariocas”, que compus após a morte de Jacob do Bandolim, autor da melodia. Não tirei cópia, entreguei o original pra você, e aí a Gal (Costa) manifestou a vontade de gravar um choro. Me procurou, a seu pedido, e fui obrigado a confessar que havia perdido a letra. Você, cuidadoso, a guardou e salvou a situação. Gal foi lá em casa, aprendeu o choro com o Luiz Otávio Braga – e o resto da história já se sabe.

Como se vê, esse arquivamento não era obedecido com regularidade. Tenho aqui diversas versões de duas letras para Ataulfo: uma chamada “Desapetece viver”, que numa das cópias aparece com o nome de “Armadilhas”, datada de 1966, e uma outra, “Desvivendo”, escrita em 06/dezembro/67. “É lixo só” não foi arquivado naqueles velhos cadernos, mas apenas no item “letras a retrabalhar”, que confusamente vou acumulando em meu computador. Era, originalmente, uma paródia que, sem querer, foi arrolada indevidamente (mea culpa, mea máxima culpa) como de parceria com Ataulfo. Na primeira versão, eu falava do meu cachorrinho Francisco Lano Bello de Carvalho, um Lhasa Apso que só mostrava simpatia por uma visitante de quem sempre buscava o colo: Aracy de Almeida.

Constato que ao fazer uma nova paródia, dessa vez abordando os problemas dos canteiros da rua onde moro, acabei apagando a primeira versão. “Armadilhas” foi gravado por Dona Inah no CD “Divino Samba Meu” (CPC-Umes, 2004). Cotejando os versos antigos com os que foram gravados (e que aliás não constam do saite), veremos que a letra definitiva ganhou novos rumos.

Quanto ao “Desvivendo’, acho que Ataulfo não se interessou pela versalhada ou não teve tempo de musicá-la. Pode ser que aconteça com esses versos o mesmo episódio ocorrido com o samba-canção “Camarim”, e que a Marilia T. Barbosa veio encontrar, musicada, após a morte de Cartola. A fita estava lá guardadinha. Ele não teve tempo de entregá-la a mim. Pode-se deduzir daí que não sou um guardião confiável de meus próprios trabalhos. Vamos ao outro e-mail (ainda tem hífen?)

From: Sergio Cabral
To: Herminio Bello de Carvalho
Sent: Sunday, December 14, 2008 12:27 AM
Subject: Consulta

Meu Hermínio,
procurei no seu acervo alguma referência sobre a troca de Ataulfo Alves pelos Cinco Crioulos no show Mudando de Conversa, e não achei. Você poderia me contar como foi isso? Se tiver mais alguma coisa para dizer sobre Ataulfo, pode dizer que eu agradeço. Beijos. Sérgio.


Vou direto ao “Timoneiro” (Ed. Casa da Palavra, 2006), meu perfil biográfico traçado por Alexandre Pavan. Tento fazer uma colagem dos estilhaços de lembranças que não tivessem chegado àquele livro – e elas se fragmentam. Quando e como conheci Ataulfo? Lembro-o em seu Cadillac (era conversível? Não me lembro. Seria espaventosamente amarelo como aquele, primeiro, que Bethânia possuía? Não posso afirmar). Como o meu acervo está em São Paulo e este saite continua em construção, é provável que muita coisa ainda venha a ser descoberta.

Lembro que ele tinha um apartamentinho (os maldosos diziam que era seu abatedouro), onde degustava alguma de suas “Pastilhas”. Ficava na esquina de Augusto Severo com a rua da Lapa, quase limítrofe ao bairro da Glória. Isso é fácil de não esquecer: o projeto do edifício, a parte que dava pra Lapa, tinha a assinatura do Oscar Niemeyer e umas persianas desaprumadas que criavam uma sinuosidade esquisita. Naquele mesmo prédio o casal Andrés Segóvia-Olga Praguer Coelho possuía igualmente um apartamento. Ali também adquiri um quarto-e-sala meio duplex, pequeníssimo. Mas aí já estamos em 1990, o prédio já em decadência.

Ah, sim! Lembro muitíssimo vagamente de um roteiro datilografado do “Leva meu samba”, que seria o nome do espetáculo que levaríamos pro Teatro Santa Rosa, do Leo Jusi. (Meus Deus, como é que esse nome veio parar aqui? Confira aí, meu Sergio, por favor!). Que Ataulfo esteve em meu apartamento na rua Benjamim Constant isso posso assegurar. Mas... e a foto comprobatória de sua presença? Posso estar confundindo com uma outra em que estão o Ciro Monteiro, a Nora Ney, Clementina e Dino 7 Cordas.

Que Ataulfo gravou a melodia do “Desapetece viver” (posterior e definitivamente intitulada “Armadilhas”) num gravador caseiro, isso é meio óbvio. Que essa fita foi pras cucuias não tenho dúvidas, mas posso também aventar a hipótese de que tenha parado nos arquivos de Jacob do Bandolim, usuário de minhas fitas. Ou não. O tempo dirá. Como já expliquei, este saite está em construção. Chegamos a ensaiar alguma coisa? Acho que não. Que Ataulfo me comunicou sua desistência por motivos de saúde, lembro bem. Que faleceria em 10 de abril de 1969 isso está no livro. Poderia falsear diálogos, até aspeá-los (que memória prodigiosa possuem certas pessoas!) ou inventar dados que jamais seriam refutados – não é o que se vê por aí? Assim como Elizeth, Ataulfo faz parte da trilha sonora de minha vida.

Mas quando e como fui apresentado a Ataulfo pessoalmente, esqueça. Você foi o primeiro a proclamar essa minha disritmia cronológica. E, e além do mais, por falta de vocação ou de noções de arquivologia, fui jogando tudo naquele cestão onde misturamos lascas de nossas memórias, apontamentos sobre um fato que para nós foi importante (e que pros outros não terá o menor significado), fotos com personagens desfocados de nossa lembrança – ah, meu Sérgio! que traiçoeiro é esse ato de catalogar aleatoriamente os fatos abagunçados de nossas (e outras) vidas.

Agora mesmo, meu Sergio, fui me socorrer de teus livros para sapecar outro exemplo de minha falta de memória: meu primeiro encontro com a Divina, que você foi descobrir e conta onde, quando e como se deu na biografia que procuro agora nas minhas estantes e não encontro. Devo tê-la emprestado para alguém não muito adepto a devoluções.

Quando a gente envelhece, é essa merda que se vê. Um beijo de teu admirador

Hermínio Bello de Carvalho

P.S. – Segue a letra definitiva do “Armadilhas”, com uma coda que agreguei recentemente. Cotejando com as que foram arquivadas nos tais cadernos, alguns poderão até perguntar: qual a relevância de colocar no saite aqueles esboços? Perguntem ao Chico Buarque, quando pedi que autografasse o original do “Chão de esmeraldas” que letrei e ele musicou. Deve ter achado uma sandice minha, e mudou de assunto. Em compensação, tenho na parede o original do “Piano na Mangueira”, autografado por ele e Tom Jobim – numa versão diferente daquela que foi gravada pelos dois. Podem procurar aí no saite.

ARMADILHAS
Ataulfo Alves/Hermínio Bello de Carvalho

Eu abri toda a casa pra te esperar
enfeitei as janelas do coração
quem mandou eu me arder nesse fogo assim?
Não valeu: quase nada sobrou de mim

iludir
é uma coisa que fazes bem
humilhar e trair fazes bem melhor
Há um porém: armadilhas não são fiéis
podem até te trair e engatar teus pés

Deixa estar
que das cinzas vou renascer
te ofuscar mais que o brilho do próprio sol
o amanhã quem dispõe ao seu modo é Deus
e só Deus sabe atar, desatar seus nós

Vai te impor um castigo atroz
(quem trair vai ficar a sós)

vais gritar de perder a voz
(e virar o seu próprio algoz)

flutuar numa dor feroz
feito a casca de uma noz

e se desenrolar, após,
fio a fio que nem retrós

pelo abismo de uma foz
sem ninguém segurar-lhe o cós

vai voar, vai sumir, veloz
pelos céus como um albatroz

Novidadeiro

Ando em falta com os amigos que acessam este saite. Sei que parece descaso abrir a tela do computador e encontrar o mesmo texto de abertura do nosso www, e não esbarrar com uma palavrinha novidadeira e/ou algumas dicas interessantes.

Mas estamos abertos a sugestões. Um amigo fala de “gavetas fora do lugar”, e não sei o que isso significa em termos internáuticos (ou internéticos?). Quero apenas ressaltar que sou responsável pelas informações que legendam, por exemplo, o link relativo às músicas (player).

Mas devo confessar uma falta bem mais grave: a minha absoluta falta de familiaridade com a Internet. Não é a-tôa que eu mesmo já me autodenominei de “anta cibernética”. Mas os construtores do nosso saite vão fazer um seminário intensivo, que me permita interferir no processo, por exemplo, de retificação de algumas legendas. Meu querido Sergio Cabral diz que sou um péssimo informante no quesito datas.

Mas tenho sempre a velha muleta que me socorre nessas horas: nunca fui pesquisador, mas um guardador de tralhas – algumas até de valor histórico. Lembro quando Clementina pisou o palco do Teatro Jovem em dezembro de 1964, na série O Menestrel, ao lado de um então quase menino chamado Turíbio Santos. Inesquecível o momento em que abriu sua apresentação cantando o “Benguelê”, que acabou sendo gravado como de “autor desconhecido” no LP “Rosa de Ouro”. Fosse pesquisador, e teria ido às fontes – e não teria passado o vexame que passei no Bar Gouveia, quando lá fui convocado pelo parceiro Pixinguinha – que me presenteou a partitura original da música, de autoria dele e com versos de Gastão Vianna.

***

Ainda sonho em ter um link em que todos possam ter acesso, por exemplo, a algumas das centenas de programas que produzi para a TVE, hoje TV Brasil. “Mas isso gera problemas com direitos autorais”, me advertiram. De minha parte, devo declarar que não recebo nenhum vintém cada vez que a TV reprisa um de meus antigos programas. E nem os colegas que lá se apresentaram. Mas, acessando o YouTube (ou I-Tube? Nunca sei) – um amigo meu descobriu até um especial de Isaurinha Garcia gravado num Água-Viva de 1977. Pode? Gostaria de mostrar pra vocês algumas preciosidades, tais como : Sidney Miller, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Padeirinho, Mauro Bolacha, Copinha, Abel Silva, Nelson Cavaquinho – e mesmo programas produzidos por terceiros, como foi o caso do Entre Amigos. Lá vocês verão este vosso amigo fazendo parte da turma entrevistadora que se mobilizou para homenagear meu querido cronista Jota Efegê (Nássara, Carlos Drummond de Andrade, Alvarus) e o grande Luciano Perrone (Tom Jobim, Joel Nascimento).

A informação tem que circular, é o meu atual bordão. Nada novidadeiro, certo?

***

Relendo o belo livro do Zuenir Ventura (“Minhas histórias dos outros”, Ed. Planeta, 2005), estanco no capítulo “A chegada da peste”, e releio muitas vezes as palavras de Betinho: “não aceito o estigma, não internalizo o anonimato. Isso faz um mal terrível”. Falava de Aids, que o vitimou. E aproveito para falar do meu câncer. Ao torná-lo público na festa de inauguração deste saite, realizada no Bar Genial dos irmãos Altman, em São Paulo, fui obediente aos conselhos que pedi ao meu oncologista: era preciso alertar que câncer de mama ataca também os homens, e que ele mata. O meu foi detectado a tempo. Posso, agora, dizer: tive câncer. Uma mastectomia o extirpou, e estou seguindo um tratamento de ingestão de pílulas durante 5 anos, o que me livrou da quimioterapia. Vá lá: é uma espécie de quimioterapia, porém menos invasiva.

Foi a primeira vez que um câncer foi aplaudido, ao ser anunciado. Tomara que o alerta tenha sido útil aos machões presentes, que se recusam a uma dedada preventiva do câncer de próstrata. É uma penetraçãozinha vagamente dolorida. Relaxa e goza, companheiro, que o pior pode vir depois.

Um outro amigo, fumante até então inveterado, ensinei-lhe a terapia: escreva sobre a doença. Funcionou.

“Podemos conversar sobre o assunto?” – perguntei a uma querida antropóloga, que andou passando um perrengue com essa história. “Claro que sim”, e me deu dicas valiosas sobre a doença. “Acho que todo mundo resolveu ter um cancerzinho”, me diz uma outra amiga, também navegante do mesmo oceano.

E não tenha medo de pronunciar a palavra câncer. Eu a conheci através de uma sinonímia, carcinoma, quando minha mãe adoeceu. Hoje, relendo meu laudo, a palavra está lá. Sublinho a palavra encapuzada, e coloco a mais popular como é conhecida e temidamente pronunciada. E vamos em frente.

***

O hábito faz o monge? Anunciam, a toda hora, a troca do livro impresso pelo virtual. Isso quer dizer o seguinte: você se refestela numa cadeira ortopédica (as cadeiras pros usuários de computador sempre as chamarei de ortopédicas) e fica virando as páginas através do mouse. Claro, daqui a pouco você poderá optar por um telão de 52”, acomodar-se numa poltrona e degustar seu Machado de Assis ou Drummond através de um toque digital. Pode ser. Meu amigo Paulinho César Pinheiro ainda gosta do texto manuscrito, depois passado a limpo numa máquina Remington.

O cheiro do lápis ainda me fascina, e folhear um livro só à moda antiga. “É um hábito”, me esclarece o Alexandre Pavan – e os hábitos nem sempre passam de uma geração pra outra. Sei não. Minha amiga Cecília Scharlach voltou de uma feira de livros e discos em Frankfurt. Trouxe a novidade: mini-edições de obras completas, por exemplo, de Shakespeare, e uma antologia de gravações de Count Basie. Edições simplificadas, feitas economicamente, e acessíveis a todos (ou quase todos) os bolsos.

Bem, até breve.

Propondo uma reflexão

Hoje faço parte do Conselho Estadual de Cultura, que não deseja ter uma função vegetativa dentro do processo renovador do Rio de Janeiro. Olho para os lados e vejo companheiros das mesmas lutas que há 30, 40 anos travamos para despoluir as mentes, com o mesmo objetivo de “iluminar as pessoas por dentro”, como bem observou o dramaturgo-psiquiatra Roberto Freire. As novas gerações carecem de formuladores de novas políticas culturais, de pensadores do porte de Mário de Andrade, Roquete Pinto, Darci Ribeiro, Anisio Teixeira, Gustavo Capanema, Rodrigo de Mello Franco, Nilse Silveira – que utilizaram ferramentas não convencionais, inaugurando conceitos num processo de valorização dos bens materiais e imateriais do nosso país.

Quando externei o pensamento de que a cultura deveria ser tratada como matéria de segurança nacional, logo tentaram criar conexões com os modelos aplicados pelas muitas ditaduras que se sucederam a partir do golpe de 1964. Aos néscios mal intencionados, o meu desprezo. Entendo que não só os contornos geográficos é que determinam as fronteiras físicas de uma nação: nossos sotaques diferenciados, as danças e cantos populares, o folclore, as crenças e credos, parlendas, a culinária, são essas e muitas outras diversidades que nos dão um registro cultural extremamente original – que devemos lutar para que não se perca.

Meia-entrada

O assunto entra nessa história, e se faz necessário explicar sua inserção neste texto do blog: no já referido Conselho está em processo uma discussão a respeito da meia-entrada. Me vejo ao lado de figuras imponentes iguais a Haroldo Costa, Ziraldo, Edino Krieger, Lélia Coelho Frota – companheiros meus, há mais de 30 anos, nessa barcaça frágil que nos conduz, aspirantes a náufragos, tormentas afora. A discussão específica sobre a meia-entrada será feita em plenário, mas careço expor meus pontos de vista e as experiências colhidas ao longo da minha vida. A meia-entrada, tal como a conhecemos, é um fenômeno brasileiro. Ela cumpriria plenamente suas finalidades, porque é igualmente uma ferramenta de estímulo à formação de novas (e jovens) platéias, caso não servisse a uma rede de corrupção que confecciona carteiras falsas de estudantes, criando uma platéia fantasma que obriga o empresariado a compensar a perda de bilheteria com o aumento dos ingressos a patamares inalcançáveis para a classe média.

Lembro que ao iniciarmos o Projeto Seis e Meia (1976) o preço do ingresso equivalia ao preço de um maço de cigarros. Era um projeto que subsidiava o espectador – assim como, logo em seguida, o Projeto Pixinguinha fixaria as mesmas regras. Qual era, então, a diferença?

Confesso que sou muito simpático à mudança do conceito de meia-entrada para “ingresso social”. Quando realizamos 24 sessões extras, durante a temporada de 3 meses do espetáculo “O samba é minha nobreza” no Cine Odeon BR para a rede pública escolar, optamos por chamá-las de sessões pedagógicas, porque a intenção era trazer a estudantada para dentro do cinema, criar um novo hábito cultural, educativo – um estímulo real, sem artifícios, que objetivava a formação de novas e jovens platéias.

Enfim: essa é uma questão importante que não pode ser ignorada pelo público que tenta ir aos cinemas e teatros e se vê impossibilitado de freqüentá-los por não dispor de uma carteirinha falsificada que lhe dê as benesses de uma obscura meia-entrada. É importante analisar essa questão sob o mesmo prisma dos produtos piratas que inundam o comércio de rua. Meia-entrada beneficia igualmente os idosos acima de 60 anos – e os resultados podem ser vistos, sobretudo, na rede de teatros, com o fenômeno das vans lotadas com o pessoal da terceira idade, na qual me incluo. Seria mais justo que todos pudessem ir ao teatro, pagando preços mais acessíveis.

Ecologia musical

Olhos mudos, ouvidos cegos – usava essa metáfora em minhas oficinas para denunciar o processo de imbecilização e idiotização promovido pelos meios de comunicação, com destaque para emissoras de rádio e televisão. Defendo a tese de uma ecologia musical, e essa discussão passa pelo retorno da educação musical nas escolas e também pela Internet, instrumento poderoso e usado, às vezes, de forma ambígua e criminosa e por vezes desinformadora.

Somos, de alguma forma, guardiões dessa cultura que vai se apodrecendo igual aos tantos manguezais que, feito o Jequiá, ajudam a oxigenar a água que bebemos. Manifeste-se.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Do Jequiá à Praça Tiradentes

A carta de Zé Luiz do Manguezal, um de meus ídolos, me faz olhar pela janela os canteiros de minha rua – que os recuperei, invertendo a função de latrinas a céu aberto para cercadinhos de angios lillium candidum, Lírios de Poetas, aparentado dos Lírios da Paz. Lembro da luta de Zé Luiz pela recuperação do Jequiá, ele me levando em sua canoinha (a Chico Bello) manguezal adentro, mostrando o lado perverso do homem: sucatas de geladeiras e bicicletas, garrafas de plástico, sofás e esqueletos de móveis apodrecendo as águas. Esse é o mesmo Zé Luiz do Manguezal que ainda sonha em levar cultura para seus meninos. Mal sabe ele a grande Escola, portátil e navegável, que ele representa em minha vida. Não sou eu quem me navega.

Não, meu querido Zé, o que posso fazer é isso aí: colocar você (e sua aflição e sonhos e probidade) diante dos visitantes do nosso saite. Prometo que, de alguma forma, tentarei divulgar o seu trabalho. Mas me dê as ferramentas: se o Jequiá, por exemplo, tem um saite que possa ser acessado. Comecemos por aí, certo?

(De qualquer maneira, hoje, 03 de janeiro de 2009, está no jornal a notícia de que a Escola Portátil já abriu as inscrições para o ano que ora se inicia, trovoento.)

Pessoas iluminantes

Pessoas iluminantes iguais a Zé Luiz encontrei vida afora – e uma delas foi Albino Pinheiro. Chovia, quando me tomou pelos braços e fomos caminhar nos entornos da Praça Tiradentes. Ele tinha sido empossado como no diretor do Teatro João Caetano. “Repara quanta gente”, era o comércio fechando às seis da tarde, as pessoas serpenteavam nas filas dos ônibus, esbarrando guarda-chuvas, ou se albergando nos bares, até que São Pedro resolvesse fechar as torneiras do céu. Nascia ali o projeto Seis e Meia, com fórmula simples: um artista mais popular apresentando outro menos conhecido. No caso, a atração era Quelé, Clementina de Jesus. João Bosco, seu convidado. Trinta anos se passaram, e não é coisa pouca. Se meus cabelos já eram brancos, a neve agora baixou de vez. Aos 73 anos, ainda sonho os mesmos sonhos de Zé Luiz e Albino Pinheiro. Nem a praça Tiradentes e nem eu somos os mesmos. As platéias envelheceram. Para onde estão indo os jovens de agora? E quais as diferenças entre esses de agora e aqueles de ontem – quando não havia Internet? E é pela Internet que flagro o quadro desolador: a imunda Baía de Guanabara, que recebe por dia o equivalente a um estádio do Maracanã cheio de lixo até a borda. (Não por acaso, estou relendo o “Saudades do Brasil”, de Claude Lévi-Strauss, cujo centenário foi celebrado em 28 de novembro último. Conta de sua breve visita a São Paulo em 1985, e sua frustrada intenção de visitar a casa onde morara na rua Cincinato Braga: foi retido por um brutal engarrafamento que o impossibilitou rever sua antiga morada. O tráfego já se encontrava em acelerado processo de decomposição.)

As perguntas que me faço

Meu irmão saiu para comprar um laptop pro neto, que está fazendo 10 anos. Teve o cuidado de anexar uma apostila sobre pedofilia, para que os pais da criança se precavessem com esse tipo de aliciamento eletrônico. Eu queria levar o menino a uma livraria e deixá-lo solto para escolher os títulos que quisesse. Não pude fazê-lo, e chove muitissimamente enquanto, dentro da pequena loja, vasculho as prateleiras, folheio livros e mais livros, tentando não errar muito na escolha. Mas são meio previsíveis certas escolhas. Vejo os preços, absurdos, dos livros infanto-juvenis – e aí entendo como é mais barato e confortável para as mães ligarem o aparelho imbecilizador e deixar seus filhos com aquela babá eletrônica.

A idéia da Escola Portátil de Música nasceu mais ou menos uns dois anos antes do espetáculo “O samba é minha nobreza”, em 2002. Lembro disso por causa de Aninha, filha de Luciana Rabello e do poeta Paulinho Pinheiro, e também porque o Pratinha, violão de 7 cordas, se orgulham de ter ido repetidas vezes ao Cine Odeon BR assistir àquele espetáculo. Tinham 14 ou 15 anos, por aí. A Escola Portátil ainda engatinhava, quando já fazíamos sessões extras (as chamadas “sessões pedagógicas”) do “O samba é minha nobreza” para a rede escolar do Rio de Janeiro. Ver aquela horda uniformizada invadindo as sessões me dava uma alegria danada. Eu me via com o uniformezinho da Escola 3-3 Deodoro, freqüentando os concertos da Juventude no Cine Rex e no Municipal e, à tarde indo às aulas de canto orfeônico – e ganhando o bônus de ver o próprio Villa-Lobos, na companhia de sua Mindinha e de Lorenzo Fernandes, inspecionando as classes. Lembro Fernando Pessoa (“E eu era feliz? Não sei: fui-o outrora agora”) e Ataulfo Alves (“Eu era feliz / e não sabia”).

As perguntas que me faço se resumem numa só: o que essa garotada quer ver e ouvir? Acho que foi Roquete Pinto quem disse que a função da Rádio era dar um pouco do que o ouvinte gosta e muito do que ele precisa. Diante da Internet, da profusão de lixo nas programações de rádio e TV, e de um processo de imbecilização movido pelo mercado – eu me pergunto: onde está o medidor para fazer a aferição desses vácuos a serem preenchidos? Meu pensamento volta à Oficina de Coisas, que ministrava na Escola Portátil de Música, e de alguma forma encontro algumas respostas. Olho pela janela e alguém joga uma guimba de cigarro dentro do canteiro. Ouço o gemido dos Lírios.

(Continua)

Uma reflexão

Minha saudosa amiga Eneida de Moraes procurava responder a todas as cartas recebidas e comparecer a todos os eventos a que era convidada. Seu corpo repousa hoje em Belém do Grão Pará, num túmulo que ela desejava localizado sob uma mangueira bem frondosa, e com a lápide ostentando o epitáfio que ditou em vida: “Essa mulher nunca topou chantagem”.

Hoje o tempo é curto, e lançamentos e exposições se multiplicaram ao infinito, impedindo que se vá abraçar o amigo escritor ou aquele outro que tomou posse na Academia de Letras (releve a ausência, meu querido Luiz Carlos Horta), o artista plástico que inaugura uma nova fase (alô, João Magalhães!) ou comparecer a uma estréia imperdível. Minha Eneida enlouqueceria com essa nova demanda, estimulada pela Internet.

Os construtores do saite Acervo HBC informam já fora contabilizados 15.000 acessos, e me parece que o número não é desprezível. “Precisamos de um novo texto de abertura”, recebo a ordem, sob a chibata do editor.

Desejo apenas explicar, como se preciso fosse, que sou repetitivo. Mas não aplico a técnica nazista de Goebbels, a de que a reiteração de uma mentira acaba por tornando-a verdade-verdadeira. Mas, volta-e-meia, me vejo xerocando antigas idéias (prefiro chamá-las de bordões) ao digitar meus textos – e você mesmo já estará se acautelando (“Xi, lá vem ele com o ‘é preciso abrasileirar o brasileiro’). Comecemos por esse aí, que se infiltra na maioria dos textos que redijo. Antes de tudo, vamos logo esclarecer que esse quase aforismo eu o pincei de uma das primeiras cartas endereçadas por Mário de Andrade a Carlos Drummond (também) de Andrade. O “A mentira é a verdade provisória”, outro dos meus bordões, foi descaradamente copiado de Salomão e, por amor à verdade, tenho que dividir os créditos com Dame Aracy de Almeida, Arquiduquesa do Encantado, que me forneceu o mote original: “o lábio da verdade ficará pra sempre, mas a língua mentirosa dura um só momento”.

Portanto, os néscios poderão pespegar mais um rótulo aos inúmeros que carrego na vida: o de plagiador, ou a de produtor de bordões claramente absorvidos de autores alheios. A Salomão e Mário de Andrade, minhas desculpas.

Enfim, preciso produzir um novo texto, porque o anterior já caducou. Mas, e finalizando a questão nele abordada, esclareço que, ao contrário do que noticiou O Globo, não procurei o Sergio Mamberti. Mas acho legítima a postulação, que escorre e transborda pelas veias da Internet, para ocupação do cargo de Diretor da Divisão de Música Popular da Funarte. Mas que não se engalfinhem os postulantes, recomendo. Exibam um currículo musculoso nos termos competência e probidade, e boa sorte. (Estou rezando pra que a ocupação do tal cargo não seja uma “cota do PT”, como me informou um dos postulantes. Apenas uma dúvida: o cargo tão disputado... está vago?) Fim.

Dito isto, passo adiante um e-mail recebido de meu querido Zé Luiz do Manguezal, que há dezenas de anos luta pela preservação do Jequiá, que ele cuida espalhando milhares de mudas de mangue-sapateiro, lá na Colônia Z-10 de Pescadores, na Ilha do Governador do Rio de Janeiro. Sabemos que os manguezais são oxigenadores das águas, e que os predadores estão aí transformando em lixeiras a céu aberto aquelas pequenas trincheiras mantidas por sonhadores iguais a Zé Luiz.

E esclareço que, a partir do próximo parágrafo, faço uma reflexão que se originou do e-mail enviado pelo meu amigo: “Meu poeta, amigo e pai, desculpe te incomodar. Gostaria de saber a possibilidade de trazer para o jequiá uma escola portátil de música ou coisa similar. Nossas crianças estão precisando de algo cultural. Nós não conseguimos mais um patrocínio para o Siri na Lata. Então pensei se o amigo teria como ajudar com idéias novas. Abraços do Zé Luiz”.

(Continua)

Em defesa do Projeto Pixinguinha

(Carta aberta ao Ministro Juca Ferreira – originalmente publicada em outubro/2008)

Poderia usar um artifício em defesa do Projeto Pixinguinha, fazendo uma colagem dos textos de Gilberto Gil defendendo aquele programa cultural nos catálogos editados pela Funarte – mas acho que você conhece fartamente o pensamento do ministro recém demissionário. E o você, no caso, não subtrai o respeito ao cargo de ministro, mas sim uma absoluta dificuldade em fazer salamaleques, ou mesmo usar de adjetivos hipócritas - que seriam logo desvendados, talvez pela falta de prática no ofício. Se há quase 50 anos eu já reverenciava Pixinguinha e Cartola, a vida me deu oportunidade de prestar atenção aos talentos que iriam enriquecer (não no sentido vil da palavra) a minha vida, possibilitando me tornar parceiro de vultos geniais iguais àqueles dois. O Projeto que leva o nome de Pixinguinha faz parte desses ritos reverenciais – assim como outros projetos que deixei aí na Funarte que, nem na época da ditadura, sofreu com episódios como os que aconteceram recentemente.

Também esse aprendizado me fez conhecer Clementina de Jesus, tão representativa na minha vida quanto o foi Chico Antonio, o cantador que a Mário de Andrade tanto impressionou. A arte de prestar atenção você pode constatá-la num texto meu de 1966, na contracapa do Lp "Muito Elizeth", no qual pedia que reparassem num jovem compositor que estava surgindo - esse mesmo Gilberto Gil que, depois Ministro, permitiu que a chama do projeto fosse reacesa na administração do Grassi. Que não se enxergue hipocrisia ou adulação quando o cultuo como o grande artista que nunca deixará de ser (acima de poderes ministeriais provisórios). E também como um colega de profissão, que veio em minha casa quando fundamos a Sombrás, isso há 30 anos, para deixar uma procuração que eu, vice do então presidente Tom Jobim, o representasse nas lutas pela moralização dos direitos autorais, numa época em que éramos assediados pela censura, no rastro do AI-5, que a Gil e Caetano aprisionou indecentemente.

Não, decididamente não creio que Gilberto Gil tenha renegado seus textos em favor do projeto ou anulado, moralmente, a referida procuração. Quanto à extinção do Pixinguinha, logo anunciada na troca de Ministros, soa como traição ou insubordinação aos ideais daquele importante músico.

No ano passado, quando fui chamado para fazer a curadoria do Pixinguinha, não imaginava que, na verdade, estavam me entregando uma urna ainda vazia, na qual iriam depositar as cinzas daquele Projeto. Aceitei o cargo sob algumas condições: que reativassem também os projetos Lúcio Rangel de Monografias e o Radamés Gnattali (discos paradidáticos), além de propor a reabertura da Sala Sidney Miller e a reedição de livros do grande Jota Efegê.

Me senti traído quando o Projeto Pixinguinha foi extinguido e mutilado, e a edição dos livros de Jota Efegê não ganharam a merecida distribuição. Mau uso do dinheiro público, fazendo reverter ao ostracismo aquelas reedições. E as outras promessas feitas? Caíram no ossário do esquecimento. Também me impressionou o clima de terrorismo que encontrei infestando aquela Casa.

É consenso que a utilização da mesma marca Pixinguinha num projeto totalmente inverso ao original foi manobra que a ninguém iludiu. É a máquina pública modorrenta e preguiçosa, viveiro de incompetentes moscas varejeiras que infectam de burocracia o fazer cultural. E criminosamente extirparam a principal característica daquele programa apoiado por Gil: a circulação da música brasileira por todo o país. Cultura que não circula morre de inanição, é devolvida ao anonimato.
Assim como confiei em Gil em 1966, não haveria porque não dar crédito àqueles que executavam sua política cultural, com especial destaque para os textos em que defendia o Projeto. Ou seriam apócrifos?

Portanto, não poderia dormir direito com minha consciência se não viesse lembrá-lo que estar Ministro até 2010 não o desonera de fazer cumprir o que foi prometido pela gestão anterior que comandava a Funarte.

É a homenagem que presto à minha consciência, ao não me silenciar diante de tais iniqüidades. Estou certo de que você, igualmente avesso a desajeitados salamaleques, há de compreender que o ano e pouco que ainda terá à frente do Ministério da Cultura o obrigará a um olhar reflexivo sobre esse ato de vandalismo e genocídio cultural que vem dizimando aqueles que ainda reverenciam a palavra empenhada e se sentem desrespeitados por esse caos.

Atenciosamente,
Hermínio Bello de Carvalho