segunda-feira, 2 de abril de 2012

Ademilde Fonseca, Pixinguinha e o feitor Pimentel


A Rainha do Choro

No mítico Bar Gouveia da Travessa do Ouvidor, Pimentel exercia com autoridade a função de feitor, aquela figura amedrontadora que aparece nas páginas sujas de nossa história, um vigilante das senzalas onde se amontoavam os escravos. Contam os livros que certas pessoas ousavam enfrentar aquela figura do Demo e ao seu chicote, e eram açoitados sem dó nem piedade, acorrentados no tronco.

Claro que ali no bar o cenário nem de longe lembrava aqueles depósitos degradantes e nem os porões dos navios negreiros que traziam escravos da África. A bem da verdade, havia sim ali um negro, de narinas dilatadas e permanente copo de uísque ao alcance das mãos.

O feitor a que me refiro tinha nome, CPF e profissão definida: advogado, moreno e jovem, e creio que na época atuava na Petrobrás. Fizera do Bar Gouveia o ponto de encontro com seu maior ídolo, São Pixinguinha. O chicote a que me referi era meramente simbólico, metafórico, utilizado apenas para açoitar a mim e ao Santo, cobrando-nos músicas, mais músicas – “vocês andam trabalhando muito pouco”. Daí termos designado de feitor um belo amigo chamado Albertino Pimentel Filho, hoje com 75 anos, dois a menos dos que meus recém completados 77. Pixinguinha teria hoje 114 anos; morreu em 73.  Relevem nossas lembranças, que podem surgir esmaecidas.

Reencontrei Pimentel na Senador Dantas há uns dois ou três anos. A mesmíssima elegância de quando o encontrava no Gouveia. Fidelíssimo, era quase sempre encontrável à mesa de Pixinga, nos horários de almoço a que tínhamos direito na época. Ambos funcionários de carteira assinada, ambos na casa dos 30 anos, ambos admiradores reverentes à figura papal, cardinalícia, aquele Baobá frondoso que a nós recebia com paciência e carinho. Mas, de quando em vez, Pimentel nos vergastava com seu chicote: queria que fizéssemos mais músicas, precisamos produzir e gravar mais, como se já não tivéssemos descido a rampa do Maracanazinho naquele Festival da Canção de 1967, os dois concorrentes parecendo pingüins nos smokings alugados no Rolas. A música era o choro “Fala baixinho”, entregue à interpretação da Rainha Ademilde Fonseca.

“E Ademilde, hein Pimentel?” 
A rainha nos fez a falseta de falecer dia 27 de março, véspera do meu aniversário. Eu acabara de sair de uma segunda cirurgia de câncer na mama, meu companheiro Luis Sérgio colocara um sétimo stent – “o que a vida não apronta pra gente, hein Pimentel?” – comentei, há pouco, ao telefone com o querido amigo. Lembrou-se do nosso encontro, quando o cineasta Miguel de Faria Jr. queria fazer um filme sobre o Pixinguinha, e achei indispensável que gravássemos um depoimento do feitor. Lá fomos nós para um Bar Gouveia totalmente fake na Galeria Cruzeiro, que lembra o original em alguns detalhes. O chapéu de Pixinga, o copo onde bebia seu uísque de cada dia, algumas fotos na parede. O filme nem sei que fim levou, mas serviu para me reaproximar do amigo.

Tal e qual como me reaproximo agora. Já combinamos um novo encontro para lembrar aquelas belas e infindáveis tardes no Gouveia. O bar eu já conhecia de sobra: o pequeno lugar fora, antes, uma joalheria pertencente a Arsene Arsenian, patrão de meu falecido  mano Eraldo, que lá trabalhava no balcão como vencedor. Quando nosso pai Ignácio trazia nossas marmitas lá da Penha, almoçávamos escondidos atrás do balcão – eu sem imaginar que, no futuro, ali beberia com São Pixinguinha.

Contei e já recontei essa história mil vezes, mas é de Ademilde que eu gostaria de falar agora. Porque fomos um pouco “bois de piranha” no já citado Festival, os primeiros a serem apresentados ao distinto e ruidoso público. Um som horroroso! O arranjo de Lindolpho Gaya era lindo, mas a tecnologia era jurássica. O áudio atravessou e de repente, atônitos, vimos/ouvimos nosso choro diluir-se num mar de sonoridades confusas. Se vaiaram? Não me lembro – juro.

Ademilde Fonseca foi a Rainha do Chorinho, título que ganhou junto com um trono que jamais desocupou, e que ninguém nunca ousou nele sentar.


Aos 91 anos deveria ter recebido muitas homenagens, inclusive uma que estava programada para acontecer na Escola Portátil de Música, onde era idolatrada. A modernidade de Ademilde está comprovada nas faixas que convido a partilharem comigo, à beira de um oloroso vinho tinto. “Derrubando violões” é um choro pirotécnico, que exige altíssima musicalidade do intérprete, e é de autoria (inclusive os versos) do Maestro Carioca, pai do também maestro Ivan Paulo.

Mas é também uma delícia ouvir nossa Rainha Ademilde entrar nessa montanha russa musical, cheia de curvas, plena de modulações. É algo que tenho um imenso prazer e honra de repartir com vocês e com amigo Albertino Pimentel Filho.

Em tempo: doei toda a minha Coleção Pixinguinha (retratos a óleo, caricaturas diversas) à Fundação do Câncer, presidida pelo meu mastologista Dr. Marcos Moraes. Quem quiser saber mais sobre essa instituição, que atende a doentes terminais, procure ler o “20 Anos de uma Boa Notícia”, livro publicado pela Editora Casa da Palavra. É um belo Trabalho.

Um projeto que não virou projeto
Ontem me telefonaram, quase simultaneamente, o grande pesquisador Jairo Severiano e o sete cordas Tiago Prata. Há pouco foi Pedro Paulo Malta, jovem pesquisador que integra o elenco do “Sassaricando”, musical de Sergio Cabral e Rosa Maria Araujo.

Comentei com os três o quanto me angustiava entrar em meu computador e constatar quantos projetos culturais ainda não consegui realizar. Por coincidência, esbarrei num trabalho que realizei para a Oficina de Coisas que ministrei na Escola Portátil de Música. A Escola, aliás, neste março de 2012, bateu seu recorde de inscrições: 1059 alunos vão aprender e discutir Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Villa-Lobos, Tom Jobim, Guinga, Radamés Gnattali, Chiquinha Gonzaga – e estarão sob a chibata amorosa e competente de mestres iguais a Luciana Rabello, Mauricio Carrilho, Pedro e Paulo Aragão, Cristovão Bastos e outras feras que construíram um dos mais belos programas educacionais deste país. A Escola Portátil já deu frutos: há uma série no CCBB (Centro Cultural do Banco do Brasil) apresentando apenas composições inéditas feitas naquela Escola. Ou seja, uma nova geração de chorões, atestando a modernidade e contemporaneidade do gênero.

Sim, e aí encontrei o esboço de um projeto que espero seja aproveitado (quem sabe?) pela nova direção da Funarte. Não custa nada, não é meu Pimentel? Não é, Jairo? Ensinar os caminhos trilhados pelo nosso companheiro de Bar, patrono do gênero, o nosso querido Alfredo da Rocha Vianna Junior, o São Pixinguinha.

E vamos lá: Coisa monográfica Nº 2 –  Choro letrado e  Samba-Choro
Edital / Regulamento
O choro seria um gênero eminentemente instrumental, que não caberia ser letrado. Essa é uma tese defendida por diversos especialistas no assunto. Mas os estudos que foram processados nas últimas décadas sobre o gênero, provocando seu inventário, revelaram uma farta produção de choros que receberam letras – como o “Carinhoso” – tornando impossível, portando, ignorar-se a sua existência.  E o samba-choro é uma das inúmeras variantes do gênero que surgiu a partir da popularização dessa manifestação musical.

A proposta
Arrolar esses subgêneros, inventariando-os, é uma forma de se estudar as múltiplas formas que foram surgindo a partir de Joaquim Antonio Callado. Uma maneira também de se conhecer gêneros paralelos que ajudaram sua constituição. Pode-se abordar, inclusive, sua inserção no universo da música erudita e semi-erudita – tomando-se como exemplo a obra do compositor Villa-Lobos que, em 1920, fez nascer a célula mater da monumental série de 14 choros. Villa já abordara o gênero entre 1908 e 1914, ao compor a “Suíte Popular Brasileira” (Mazurka-choro, schotisch-choro, valsa-choro, gavota-choro, chorinho). O gênero apareceria ainda na ária da “Bachianas 6” (1938) – e ao longo de sua obra.

Subsídios
Mestre Ary Vasconcellos é incisivo no capítulo “Regras do jogo” (“Carinhoso etc, história e inventário do choro”, ed. particular de 1984). “Quanto ao choro cantado, concordo em gênero, número e grau com mestre Luiz Heitor (Correia de Azevedo): ‘Choro é música essencialmente instrumental, repele qualquer feição melódica vocalizável e, muito mais ainda, textos poéticos’ (150 anos de Música no Brasil, págs. 149-150).” E, ao apresentar a discografia do choro, Ary exclui previamente aqueles letrados: “choro vocal deixa de ser choro para ser canção. Outro Departamento”.

Já a professora Oneyda Alvarenga, discípula dileta de Mário de Andrade, aponta à pag. 299 do seu “Música Popular brasileira” (Ed. Globo, 1960): “Especificamente instrumental até nosso tempo, o gênero choro vem apresentando, de poucos anos para cá, peças vocais ligadas ao samba, caracterizadas por uma linha melódica saltitante, em que a voz é praticamente o sucedâneo do instrumento de sopro solista. Esses choros vocais conservam de preferência a forma do choro instrumental, que é geralmente em três partes assim distribuídas : A-B-A-C-A. Entretanto, adotam também o corte em estrofe e refrão do samba urbano, caso em que recebeu a designação definidora de samba-chôro”.

Os professores Anna Paes e Pedro Aragão repetem, na apostila editada para o III Festival Nacional de Choro (2007, pag. 24) os mesmos conceitos emitidos à pag. 21 da apostila de 2004. “O samba sempre esteve relacionado historicamente com o choro – a maioria dos músicos que acompanharam cantores de samba era formada pela escola do choro: Pixinguinha, Benedito Lacerda, Dino, Meira, Canhoto, entre muitos outros. A influência do choro pode ser sentida também nas composições de muitos sambistas, como Nelson Cavaquinho – cujo modo de tocar violão, repleto de baixarias, nos remete aos contrapontos do choro. (...) Dessa relação entre samba e choro nasceram dois outros gêneros que poderíamos chamar de samba-choro e choro-samba. (...) Note-se que existem choros que receberam posteriormente letra. Estes não constituem samba-choro, pois não foram compostos originalmente para receber letras, como é o caso de ‘Doce de côco’ e ‘Ingênuo’ (letrados por Hermínio Bello de Carvalho e Paulo Cesar Pinheiro, respectivamente). São simplesmente choros.”

Histórico
Se a professora Oneyda Alvarenga avançou até “a designação definidora de samba-choro”, podemos fazer ilações do pensamento de seu Mestre, ao consultarmos o verbete dedicado ao gênero em seu “Dicionário Musical”, quando alude à equivalência encontrada entre o agrupamento na execução do “Urubu” (“maravilhosamente executado por Pixinguinha, uma das excelências da discoteca brasileira”) ao “hot-jazz admirável de Louis Armstrong” (novamente comentários do próprio Mario) executando “Chinatown, My Chinatown” e “I Got Rhythm” – que “são, por assim dizer,  choros-hot”.


Quando Ademilde Fonseca cantou o “Tico-Tico no Fubá” pela primeira vez, em 1942, e acompanhada por Benedito Lacerda, Mário de Andrade já havia abandonado as mesas da Taberna da Gória e dos bares da Galeria Cruzeiro e do Vermelhinho, que frequentara no período (1938/1941) em que se auto-exilou no Rio de Janeiro. Abandonara as discussões sobre o samba rural paulista, para aprender os sambas cariocas de Ismael Silva. Quando, em novembro de 1954, mestre Lúcio Rangel desce o sarrafo em Ademilde Fonseca na “Revista da Música Popular” por ela ter gravado o “Pinicadinho”, a antiga polca-choro de Ratinho numa versão letrada por Jararaca, não estaria repisando conceitos soprados aos ouvidos de Mário, quando iam se encontrar na Taberna da Glória?

Mas o espírito democrático de Lúcio, editor da revista, fez publicar em setembro de 1956 um artigo de Mário Faccini, que abria aspas para citar o enfocado da matéria, o Henrique Foreis (Almirante, a maior patente do Rádio): “Quem primeiro buscou estabelecer uma concordância entre o fraseado melódico e o canto foi Gadé, que iniciou a série com ‘Amor em excesso’, aparecido em 1932”. Gadé, grande pianista, que forneceu ao radicalíssimo Almirante nada menos que oito choros letrados, os quais o grande radialista-cantor gravou num antológico disco de dez polegadas.

É sempre oportuno lembrar que já no início do século XX, acompanhando as primeiras gerações de chorões, o poeta Catulo da Paixão Cearense letrou inúmeros choros (e todos os seus gêneros conformadores como a polca, o schottisch, a valsa, etc) de compositores como Irineu de Almeida, Anacleto de Medeiros, entre muitos outros. Destaque-se por exemplo o schottisch “Rasga Coração”, de Anacleto (“Yara”, originalmente), que mais tarde seria utilizado por Heitor Villa-Lobos em seu “Choros 10”.

Quanto ao mestre-orientador da professora Oneyda, devemos estar sempre atentos à complexidade de sua obra, que vai nos oferecendo interfaces surpreendentes, que nos leva a tirar ilações as mais estapafúrdias a respeito de seus conhecimentos sobre a matéria. Ademilde Fonseca iria gravar mais tarde uma versão choro-hot do “Urubu malandro” devidamente letrado, cuja versão instrumental de Pixinguinha encatara a Mário. E não esquecendo a fenomenal dupla Gadé e Walfrido Silva, com seus sambas-choro transcendentais.

Finalizando
Para muitos, o “Chega de saudade” nada mais é senão um choro bossa nova. Quem duvidar, que ouça Jacob do Bandolim improvisando com o Zimbo Trio, naquele concerto que tive a honra de dirigir em 1968, colocando Elizeth ao lado de seu descobridor, do Época de Ouro e do Zimbo Trio.
Pois, é Pimentel. Você nos deu o mote para essa homenagem à Rainha Ademilde Fonseca.
Obrigado.

Herminio Bello de Carvalho