quinta-feira, 1 de julho de 2010

Aldir Blanc e Jota Efegê: o milagre

No belo “Conversa sobre o tempo” (Ed. Agir), num bate-papo conduzido por Arthur Dapieve, os Mestres Luis Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura conversam sobre a morte, no capítulo final do livro. Sendo um neurótico compulsivo, claro que o assunto me conduziu a vôos delirantes, a mil devaneios, quase todos mórbidos. Mas costumo driblar esse assunto com algum bom humor. Explicito sempre aos meus interlocutores que sou uma lápide ambulante, e que estou apenas tecnicamente vivo. E mais: ao ler meus laudos médicos, nas entrelinhas descubro atestados de óbito, antevejo obituários, ouço a marcha fúnebre de Chopin, nunca sei se o médico falou em diagnóstico ou prognóstico e se realmente me perguntou, sem sutilezas, se já consultei as cartas do tarô para saber as novas mazelas que estão a caminho.

Faço esse prolegômeno em função de um longo telefonema de meu poeta Aldir Blanc, tão hipocondríaco quanto eu. Desfilei, para afrontá-lo, uma listagem de minhas enfermices (4 stents, câncer na mama, redução acelerada de meus poucos neurônios) e, finalmente, a doença chave: labirintite. Na disputa pelos piores resultados, desfilamos vertigens, surtos psicóticos, ameaças de desmaio – e confesso que perdi a parada quando Aldir me anunciou que, além do mais, alcançou um pique de 500 pontos (ou que nome técnico isso possa ter) em sua taxa de açúcar. Ou seja: sentiu-se também personagem do capítulo derradeiro do “Conversa sobre o tempo”, pois a foice da morte o Poeta a viu de perto, zunindo aos ouvidos. E que, por conta dessa altíssisma taxa de açúcar, viu-se ameaçado de quase cegueira. Ler? Nem pensar!, avisou o esculápio. Assistir aos jogos da Copa, vendo 44 jogadores disputando as 4 bolas, que tentasse. Tentou, e deu-se mal.

O desespero tomou conta do Poeta, ex psicanalista. E como o papo era entre dois amigos, sugeri que o assunto daria uma boa crônica – e ele me autorizou a relatar a experiência que narro agora. Há alguns anos, num texto muito bonito, o Aldir comentava um dos aspectos da minha personalidade um tanto mórbida, o de colecionar lembranças de meus amigos mortos: um vestido de Dalva de Oliveira (depois doado à Alaíde Costa), louças e faqueiro de Elizeth Cardoso adquiridos em leilão, e que hoje estão à mesa de Elenice e Helton Altman, além de uma gravata do Tom Jobim, diversas trapizongas herdadas de Jacob do Bandolim, um latifúndio de quinquilharias que, para não mais me alongar, acolhia também as famosas gravatinhas brabuletas de nosso amado cronista Jota Efegê, e um par de óculos do Mestre, que destinei, por direito, ao meu querido Aldir. Isso há muitos e muitos anos.

O cronista Jota Efegê, de óculos e gravata 'brabuleta',
bebendo no Zicartola, em 1963

Se houver mistifório, balela, landuá, aldrabife, pulha, relambóia no que em seguida vos conto, não me pespeguem o rótulo de loroteiro. E Aldir, ressalvo, seria incapaz de pregar mentirolas, contar vantagens, prestar falso testemunho.

– Cadê os óculos do Jota Efegê? – E Aldir, quando se destempera, sai de perto.

O brado ecoou pela casa, pelas vizinhanças, adentrou no bar de Dona Maria, rebimbou no gramado do Maracanã, alcançou todas as cercanias do bairro tijucano habitado pelo nosso poeta, colocando a família Blanc (aí incluído, presumo, seus netos) num alvoroço invulgar. Desconheço se o Mello Menezes foi convocado para a procura que se fez pelos gavetórios, escrivaninhas, estantes – porque tudo foi escarafunchado depois daquele brado de guerra.

O desfecho será breve. Encontrados os óculos (antigão, hastes pesadas, lentes poderosíssimas), deu-se o milagre: o que era breu, carvão, negrume total, fez-se alumiamento. E cá temos o Poeta de volta às leituras proibidas pelo médico, que até hoje não sabe explicar o que aconteceu.

Coisas de São Jota Efegê, revelando-se milagreiro em benefício de um de seus acólitos favoritos – que aliás, com Sivuca, compôs o “Rancho das Abelhas” em homenagem ao nosso santo velhinho, padroeiro da crônica carnavalesca do Rio de Janeiro, amigo e Mestre querido, que não me canso de louvar.

Sempre revolucionária

Vamos virar a ampulheta, retroceder uns 30 anos, e perceber que, na cozinha, existe uma certa algaravia. Um destampar de panelas misturado a exclamações de todos os tipos – e a pergunta habitual: hoje tem bolinho de jiló? Quem chega é a Divina Elizeth, sempre entrando pela cozinha para, gulosa, inspecionar as panelas. Para quem não conheceu a Divina e Enluarada pessoalmente, devo esclarecer que ela não é de ir a lugares enfumaçados e recendentes a bebida. Já trabalhou tanto ganhando a vida com sua voz privilegiada, que hoje é seletiva. Por exemplo, só sai de casa para ouvir uma Áurea Martins. E aí não economiza elogios, como se comprova em sua biografia escrita por Sergio Cabral, que inclui Áurea entre suas intérpretes preferidas.

Se estou falando de Elizeth é porque minha relação pessoal com a Divina era meio de irmão um pouco mais novo, dela chegar em casa e, perguntada como andava de amores, dizia em alto e bom som: “Não tenho nem quem me mande à merda!”. Mentira pura, engodo inútil que a figura linda, pernas e braços roliços, a elegância natural – fica difícil pensar na Divina encerrada num claustro.

Bia Paes Leme me pede um texto sobre Elizeth, para as comemorações do noventenário da Divina. Como negar alguma coisa à minha Divina Cléo (Cleonice Berardinelli) da música, que aos cinco anos, com outra sobrinha minha, Sheilla, foi assistir ao “Rosa de Ouro” no Teatro Jovem, levadas por mim. Talvez, quem sabe, tenha sentado ao lado de Elizeth, que não saía de lá.

Há pouco tempo o (Luiz Fernando) Veríssimo escreveu uma belíssima crônica intitulada “Revolucionários”, centrada nas figuras de Miles Davis e Elizeth. Miles era um revolucionário, que transitava por todas as vertentes modernas do jazz, surfando no bebop, inventando o cool jazz e trocando-o em seguida por outra invenção presumivelmente sua, o hard bop. Isso não o impediu de gravar um disco inesquecível, o “Porgy and Bess”, que teria uma outra versão maravilhosa com Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, e uma outra, se não me engano, com Ray Charles e Betty Carter. Mas, insatisfeito, ei-lo agora lançando o “Kind of Blue”, numa experiência que chamou de jazz modal. E aí, conclui Veríssimo, eis que Miles surge de túnicas coloridas, fundindo jazz com o rock. Mais radical, impossível.

Veríssimo, enfim, encontra similaridade entre Miles Davis e Elizeth Cardoso no quesito “Revolucionários”. Cita o célebre “Canção do amor demais” (1958), ela juntando Tom e Vinicius, e fazendo-se acompanhar pelo violão de João Gilberto, mas negando-se a se entrelaçar no modelo de canto minimalista com que ele tentara seduzi-la, sem sucesso. A bossa-nova, como a conhecemos, não começaria ali na interpretação de Elizeth – mas um tempo depois, quando João, enfim, conseguiu impor sua estética.

Elizeth Cardoso e Turíbio Santos, em 1960

Veríssimo cita não só esse disco mas também o “Elizeth sobe o morro”, que tive o privilégio de produzir para a Divina. A fantástica intérprete de Tom e Vinicius aparece agora com outro violão, cujas estranhezas logo fariam celebrizar seu executante: Nelson Cavaquinho. Colocá-lo acompanhando Elizeth, e cantando com ela, foi sim uma atitude que afrontava as regras ditadas pelo mercado. Porque tudo ali se contrapunha à estética joãogilbertiana: a voz rascante de Nelson, seu violão quase primitivo, de uma rudeza transcendental, tudo ali transpirava beleza. Lembraria ao Veríssimo outras atitudes revolucionárias de Elizeth: cantar a “Bachianas nº 5”, de Villa-Lobos, sob a regência de Diogo Pacheco (isso em 1964); deixar-se flutuar na “Melodia sentimental”, do mesmo Villa, num “Concertos para a Juventude”, acompanhada pelo violão erudito de Turíbio Santos; e se enredando também nas cordas de Baden Powell, ou interpretando um Cláudio Santoro para, em seguida, fazer dupla com quem?, Ciro Monteiro.

E como não citar o concerto no Teatro João Caetano, em 1968, ela ao lado de Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e Época de Ouro? E, igual a Miles Davis, também vestia por vezes as túnicas coloridas para ir gravar seus dois discos terminais, o “Ari amoroso” e o “Todo sentimento”, neste último acompanhada pelo 7 cordas de Rafael Rabello. No estúdio, algumas vezes, pedia um tempo para deitar-se e contorcer-se de dor com o câncer que a levaria logo depois, sem poder alcançar o lançamento daqueles dois trabalhos.

Se conto essas coisas, 20 anos após o desaparecimento de Elizeth e nos 90 anos que faria em julho de 2010, é para ampliar o conceito do grande Veríssimo, que se pergunta, ao final da crônica, “se Elizeth subiu o morro no mesmo espírito com que o Miles voltou ao hard bop”. Num programa de televisão, armei uma cilada para ela: “Tom Jobim ou Pixinguinha”. E a Divina, sem pestanejar: “ora, fico com os dois”. Subir ou não o morro, pisar o palco do Theatro Municipal, deixar-se levar pelo Brasil afora com o piano de Radamés e com a moderníssima Camerata Carioca, cantar “a capella” o “Serenata de adeus”, fazendo o público debulhar-se em lágrimas inestancáveis e ovacioná-la de pé – nada fazia diferença para Elizeth, desde que a qualidade, e os riscos a ela inerentes, estivesse presente.

Revolucionária sempre.

Lélia Coelho Frota

Em 1999, à frente do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, a antropóloga Lélia Coelho Frota me convidou para produzir artisticamente o primeiro de uma série de CDs que pretendia lançar sobre os sambas de terreiro das mais tradicionais escolas de samba – e a primeira escolhida fora a Mangueira. Um belo disco, que teve arranjos de Mestre Paulão 7 Cordas e assistência de produção de Kiko Horta, fantástico acordeonista. Uma vasta pesquisa de campo nos foi oferecida por nossa querida Lélia, cuja missa de trigésimo dia vejo anunciada nos jornais de hoje, 30 de junho de 2010.

Valeram-me os arquivos que deram origem a este saite. Neles tinha guardado gravações preciosas, registros feitos na minha casa ou nas de Cartola ou Carlos Cachaça – e até, se não me engano, na Birosca da Efigenia do Balbino, quando ainda podia se freqüentar, sem sustos, o Buraco Quente da Mangueira. A fita, talvez a mais preciosa do lote de registros, fora preservada por um amigo querido – o jornalista Arley Pereira.

Gravações caseiras, feitas no início da década de 60 – e o disco produzido pelo Arquivo Geral da Cidade é hoje um documento preciosíssimo para aqueles que quiserem entender a evolução do samba de terreiro até chegar às quadras das Escolas, quando praticamente se extinguiu.

Foi graças a esse registro que um samba de Padeirinho não caiu no total esquecimento: “Modificado”, regravado há pouco por Tantinho da Mangueira e também por meu parceiro Fernando Temporão.

À Lélia devo muitíssimo. Fomos companheiros de trabalho na antiga Funarte, onde desenvolveu um trabalho esplêndido na área do folclore. Mais recentemente, integramos o Conselho Estadual de Cultura, onde sua atuação era, no mínimo, brilhantíssima.

Nosso último encontro, em sua casa, há uns dois meses, teve a cultura como antepasto, almoço e sobremesa. E com um amável convite para um repeteco, que lastimavelmente não pôde acontecer.