quinta-feira, 1 de julho de 2010

Sempre revolucionária

Vamos virar a ampulheta, retroceder uns 30 anos, e perceber que, na cozinha, existe uma certa algaravia. Um destampar de panelas misturado a exclamações de todos os tipos – e a pergunta habitual: hoje tem bolinho de jiló? Quem chega é a Divina Elizeth, sempre entrando pela cozinha para, gulosa, inspecionar as panelas. Para quem não conheceu a Divina e Enluarada pessoalmente, devo esclarecer que ela não é de ir a lugares enfumaçados e recendentes a bebida. Já trabalhou tanto ganhando a vida com sua voz privilegiada, que hoje é seletiva. Por exemplo, só sai de casa para ouvir uma Áurea Martins. E aí não economiza elogios, como se comprova em sua biografia escrita por Sergio Cabral, que inclui Áurea entre suas intérpretes preferidas.

Se estou falando de Elizeth é porque minha relação pessoal com a Divina era meio de irmão um pouco mais novo, dela chegar em casa e, perguntada como andava de amores, dizia em alto e bom som: “Não tenho nem quem me mande à merda!”. Mentira pura, engodo inútil que a figura linda, pernas e braços roliços, a elegância natural – fica difícil pensar na Divina encerrada num claustro.

Bia Paes Leme me pede um texto sobre Elizeth, para as comemorações do noventenário da Divina. Como negar alguma coisa à minha Divina Cléo (Cleonice Berardinelli) da música, que aos cinco anos, com outra sobrinha minha, Sheilla, foi assistir ao “Rosa de Ouro” no Teatro Jovem, levadas por mim. Talvez, quem sabe, tenha sentado ao lado de Elizeth, que não saía de lá.

Há pouco tempo o (Luiz Fernando) Veríssimo escreveu uma belíssima crônica intitulada “Revolucionários”, centrada nas figuras de Miles Davis e Elizeth. Miles era um revolucionário, que transitava por todas as vertentes modernas do jazz, surfando no bebop, inventando o cool jazz e trocando-o em seguida por outra invenção presumivelmente sua, o hard bop. Isso não o impediu de gravar um disco inesquecível, o “Porgy and Bess”, que teria uma outra versão maravilhosa com Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, e uma outra, se não me engano, com Ray Charles e Betty Carter. Mas, insatisfeito, ei-lo agora lançando o “Kind of Blue”, numa experiência que chamou de jazz modal. E aí, conclui Veríssimo, eis que Miles surge de túnicas coloridas, fundindo jazz com o rock. Mais radical, impossível.

Veríssimo, enfim, encontra similaridade entre Miles Davis e Elizeth Cardoso no quesito “Revolucionários”. Cita o célebre “Canção do amor demais” (1958), ela juntando Tom e Vinicius, e fazendo-se acompanhar pelo violão de João Gilberto, mas negando-se a se entrelaçar no modelo de canto minimalista com que ele tentara seduzi-la, sem sucesso. A bossa-nova, como a conhecemos, não começaria ali na interpretação de Elizeth – mas um tempo depois, quando João, enfim, conseguiu impor sua estética.

Elizeth Cardoso e Turíbio Santos, em 1960

Veríssimo cita não só esse disco mas também o “Elizeth sobe o morro”, que tive o privilégio de produzir para a Divina. A fantástica intérprete de Tom e Vinicius aparece agora com outro violão, cujas estranhezas logo fariam celebrizar seu executante: Nelson Cavaquinho. Colocá-lo acompanhando Elizeth, e cantando com ela, foi sim uma atitude que afrontava as regras ditadas pelo mercado. Porque tudo ali se contrapunha à estética joãogilbertiana: a voz rascante de Nelson, seu violão quase primitivo, de uma rudeza transcendental, tudo ali transpirava beleza. Lembraria ao Veríssimo outras atitudes revolucionárias de Elizeth: cantar a “Bachianas nº 5”, de Villa-Lobos, sob a regência de Diogo Pacheco (isso em 1964); deixar-se flutuar na “Melodia sentimental”, do mesmo Villa, num “Concertos para a Juventude”, acompanhada pelo violão erudito de Turíbio Santos; e se enredando também nas cordas de Baden Powell, ou interpretando um Cláudio Santoro para, em seguida, fazer dupla com quem?, Ciro Monteiro.

E como não citar o concerto no Teatro João Caetano, em 1968, ela ao lado de Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e Época de Ouro? E, igual a Miles Davis, também vestia por vezes as túnicas coloridas para ir gravar seus dois discos terminais, o “Ari amoroso” e o “Todo sentimento”, neste último acompanhada pelo 7 cordas de Rafael Rabello. No estúdio, algumas vezes, pedia um tempo para deitar-se e contorcer-se de dor com o câncer que a levaria logo depois, sem poder alcançar o lançamento daqueles dois trabalhos.

Se conto essas coisas, 20 anos após o desaparecimento de Elizeth e nos 90 anos que faria em julho de 2010, é para ampliar o conceito do grande Veríssimo, que se pergunta, ao final da crônica, “se Elizeth subiu o morro no mesmo espírito com que o Miles voltou ao hard bop”. Num programa de televisão, armei uma cilada para ela: “Tom Jobim ou Pixinguinha”. E a Divina, sem pestanejar: “ora, fico com os dois”. Subir ou não o morro, pisar o palco do Theatro Municipal, deixar-se levar pelo Brasil afora com o piano de Radamés e com a moderníssima Camerata Carioca, cantar “a capella” o “Serenata de adeus”, fazendo o público debulhar-se em lágrimas inestancáveis e ovacioná-la de pé – nada fazia diferença para Elizeth, desde que a qualidade, e os riscos a ela inerentes, estivesse presente.

Revolucionária sempre.