sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

depontacabeça (IV)

Por Hermínio Bello de Carvalho

Este DEPONTACABEÇA é uma celebração pelos 70 anos que Aurea Martins está festejando neste 2010, e uma extensão do disco anterior, que deu a ela o prêmio de Melhor cantora de 2009. 

Lembro quando seu nome foi anunciado no “Canecão” por Fernanda Montenegro, que por um momento achou que Áurea estivesse ausente. Até refazer-se do susto e alcançar o palco, ela foi ovacionada pela plateia e pelos colegas de profissão, já que o prêmio significava o reconhecimento de uma nobre carreira de quase meio século. A “crooner de voz rouca”, reconhecida por Nei Lopes como uma das três maiores
cantoras do Brasil, continuava atuando sob um espantoso manto de invisibilidade que a sua profissão – “Cantora da noite? Eu também canto de dia!”, ela costuma brincar – reserva para um tipo raro de artista. Ele você verá raríssimas vezes na televisão e ouvirá, possivelmente, ainda menos nas emissoras de rádio.


Causa espanto saber que em quase 50 anos de estrada, este seja apenas o quarto disco de Áurea Martins - o que sublinha e reforça a tese do ostracismo defendida por Aldir Blanc, mas  que prefiro chamar de invisibilidde. 

O disco anterior foi co-produzido com o pianista Zé-Maria Camilotto Rocha, autor do perfil biográfico que consta deste release.  Desta vez,  o  violonista Lucas Porto, que atua como professor na Escola Portátil de Música, dividiu comigo os trabalhos de produção artistica do DEPONTACABEÇA. 

Comentava com Lucas, olhando a meninada folheando as partituras dentro do estúdio, que maravilhoso arco do tempo havia em nosso disco.  Entre os instrumentistas, o mais jovem tinha 21 anos – nosso Luizinho Barcellos. E, no repertório, a presença de jovens parceiros como Vidal Assis e Fernando Penello, ambos na faixa dos 25 anos, indo às culminâncias de minha parceria com Alfredo da Rocha Viana Junior, o Pixinguinha (que hoje teria 113 anos).  

depontacabeça (III)

Por Aldir Blanc

Em qualquer país que preze sua cultura, Áurea Martins seria incensada. No Brasil, terra de indigência e cascatas culturais, Áurea Martins não aparece nas rádios nem na televisão. É como se privássemos o povo brasileiro de beber em fonte límpida. Cantar é, já disse e repito, o Maior Espetáculo da Alma. E nossa própria alma nunca se redimirá sem a voz sagrada de Áurea. Ela faz parte, e talvez seja a última representante, de uma tradição inesgotavelmente rica, e é também pedagógica, porque uma porção de gente que se acha cantora tem muito que aprender com a Áurea Martins.


É incrível que uma artista assim diamantífera, única, jóia da Coroa de Ouro formada por cantoras como Ângela Maria, as Irmãs Baptistas, Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Aracy de Almeida, Clementina de Jesus  permaneça em ostracismo cruel.

Áurea Martins é o elo vivo de uma história, de uma Legenda Cultural nossa – uma Legenda Áurea!

depontacabeça (II)

Por Zé-Maria Camiloto Rocha

ÁUREA MARTINS brotou e floresceu duma cepa de músicos (sua avó tocava banjo) radicada em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Suas primeiras apresentações em público dão-se como integrante do coral do Ginásio Estadual “Raja Gabaglia”. No final da adolescência, passa a freqüentar os clubes da jazz do subúrbio e a atuar como lady crooner do conjunto dos tios em bailes da periferia. Na primeira metade dos anos 60, começa a ser atraída para o centro da cidade. Numa renovação do cast da Rádio Nacional, é incluída entre os novos integrantes do elenco da emissora, ao lado de Alaíde Costa, Peri Ribeiro e Elis Regina (1945-1982), sob o incentivo de Paulo Gracindo (1911-1995). Registra-se então sua voz em disco pela primeira vez,  numa faixa do LP Alvorada dos Novos, produzido por Altamiro Carrilho para a Copacabana.

Em 1969, vence a quarta edição do programa anual A Grande Chance, criado e apresentado por Flávio Cavalcanti (1923-1986) para a Rede Tupi de Televisão. O certame, com final realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, teve entre os membros do júri os maestros Erlon Chaves (1933-1974), Guerra Peixe (1914-1993) e Linfolfo Gaia (1021-1987); o pianista Bené Nunes (1920-1997); a cantora e compositora Maysa (1936-1977); a atriz, cantora e diretora Bibi Ferreira; e o jornalista e escritor Austragésilo de Ataíde (1898-1993). Pelo primeiro lugar, conquistado com a nota máxima de todos os jurados, Áurea  recebe como prêmio uma viagem a Portugal e um contrato para gravação de discos na RCA Victor. Na esteira do sucesso pela vitória do concurso, foi contratada para se apresentar na boate “Drink”, da cantora e empresária Helena de Lima, em Copacabana. Em 1970, faz sua estréia em São Paulo, num show no Teatro Gazeta com o pianista e compositor Ribamar (1919-1987), parceiro de Dolores Duran (1930-1959) na canção Pela Rua, interpretada por ela na final de A Grande Chance. Após registrar dois compactos, produzidos por Rildo Hora e com arranjos de Guerra Peixe, lança em 1972 seu primeiro LP. No disco –  também produzido por Rildo, com arranjos do pianista Luís Eça (1936-1992) e a participação do poeta Paulo Mendes Campos (1922-1991) –, Áurea é acompanhada pelo Tamba Trio mais o violonista Luís Cláudio Ramos.  

(Seu talento sempre foi muito bem reconhecido, sim. Mas, para complementar os incertos cachês de cantora da noite, Áurea achou melhor arranjar um trabalho diurno que lhe garantisse um salário fixo –  e nisto teve sorte como quê! De carteira assinada, entrou para o serviço público como inspetora de classe no Colégio Estadual “André Maurois”, no Leblon, então sob a direção de D. Henriette Amado. [Dentre os jovens sob a sua inspeção, ela se lembra especialmente de Evandro Mesquita.] Quando os alunos se organizaram para promover um festival escolar da canção, um deles falou: “A inspetora canta.” E assim, Áurea voltou a cantar num colégio. Agora, porém, não mais como integrante de coral; mas como solista. A partir daí, várias foram as vezes em que D. Henriette a convocou à sala da diretoria [que, aliás, não tinha porta] para que cantasse para ela, em pleno expediente [People, de Jule Styne & Bob Merril, era uma das preferidas da valente educadora experimental]. Mas o sonho da brava senhora foi drasticamente interrompido numa manhã de agosto de 1971. Ao ver D. Henriette ser retirada do estabelecimento pelos militares, Áurea saiu junto e não voltou sequer para dar baixa na carteira.)

No Dancing Brasil, na Avenida Rio Branco, Áurea Martins tem a oportunidade de trabalhar em 1972 com o cultuado “Fats” Elpídio, que ela, já de menina, conhecera através de suas gravações como pianista da legendária boate “Vogue”. O saxofonista Paulo Moura, que presenciara seu êxito na noite do Municipal, e o pianista Wagner Tiso levam-na dali até Atenas, para com eles se apresentar sob os auspícios embaixada brasileira na Grécia. Ao voltar, é contratada pela boate “Number One”, em Ipanema. Ali, ao lado de Djavan, faz revezamento com Alcione, tendo no acompanhamento o pianista Édson Frederico. A amizade com Emílio Santiago começa na boate “706”, no Leblon, ainda na primeira metade dos anos 70, onde Áurea estréia acompanhada pelo pianista Cristóvão Bastos. No final daquela década, quando a música fina da noite boêmia da Zona Sul começa a migrar para as margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, Áurea vai junto: “O Teclado”, onde atua pela primeira vez ao lado do pianista Zé-Maria Rocha, revezando com Johnny Alf; “Chiko’s Bar”, com Luís Carlos Vinhas (1940-2001); “Antonino” e, já nos anos 90, os shows do “Au Bar”, divididos com Marisa Gata Mansa (1938-2003) e Zezé Gonzaga. Seu destino seguinte é a nova Lapa, onde inaugura o “Carioca da Gema” (de cujo elenco participou por sete anos) e faz diversas atuações no “Rio Scenarium”. 

Foi num salão de beleza, entretanto, que conheceu Elizeth Cardoso. Áurea e a Enluarada tornaram-se amigas. A partir de então, tornou-se freqüente o fato de a Divina deixar o recesso do Olimpo à noite para, metamorfoseada em simples cliente de boate, ir ouvir Áurea cantar. Conta Hermínio Bello de Carvalho que, certa vez, enquanto Áurea dava seu recado numa festa particular na qual se sucediam diversas canjas, Jamelão confidenciou ao seu ouvido: “Essa aí sabe das coisas...”) 

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

depontacabeça (I)


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