quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Ataulfo Alves e Sérgio Cabral

Ataulfo Alves

Meu querido Sergio Cabral tem agora seus dias ocupados com a biografia que está traçando de uma figura cheia de nobreza que atende pelo nome de Ataulfo Alves. Vamos ao e-mail que me mandou:

From: Sergio Cabral
To: Herminio Bello de Carvalho
Sent: Sunday, December 14, 2008 10:05 PM
Subject: Ataulfo

No seu acervo, constam três músicas da parceria com Ataulfo: “Armadilha”, “Desvivendo” e “É lixo só”. São graváveis? É claro que são. Beijos. Sérgio.


Tinha por hábito, quase uma regra, a de colocar em cadernos espiralados (e eram quatro) os rascunhos das músicas que compunha com meus parceiros. Isso não aconteceu, por exemplo, com a letra do choro “Noites Cariocas”, que compus após a morte de Jacob do Bandolim, autor da melodia. Não tirei cópia, entreguei o original pra você, e aí a Gal (Costa) manifestou a vontade de gravar um choro. Me procurou, a seu pedido, e fui obrigado a confessar que havia perdido a letra. Você, cuidadoso, a guardou e salvou a situação. Gal foi lá em casa, aprendeu o choro com o Luiz Otávio Braga – e o resto da história já se sabe.

Como se vê, esse arquivamento não era obedecido com regularidade. Tenho aqui diversas versões de duas letras para Ataulfo: uma chamada “Desapetece viver”, que numa das cópias aparece com o nome de “Armadilhas”, datada de 1966, e uma outra, “Desvivendo”, escrita em 06/dezembro/67. “É lixo só” não foi arquivado naqueles velhos cadernos, mas apenas no item “letras a retrabalhar”, que confusamente vou acumulando em meu computador. Era, originalmente, uma paródia que, sem querer, foi arrolada indevidamente (mea culpa, mea máxima culpa) como de parceria com Ataulfo. Na primeira versão, eu falava do meu cachorrinho Francisco Lano Bello de Carvalho, um Lhasa Apso que só mostrava simpatia por uma visitante de quem sempre buscava o colo: Aracy de Almeida.

Constato que ao fazer uma nova paródia, dessa vez abordando os problemas dos canteiros da rua onde moro, acabei apagando a primeira versão. “Armadilhas” foi gravado por Dona Inah no CD “Divino Samba Meu” (CPC-Umes, 2004). Cotejando os versos antigos com os que foram gravados (e que aliás não constam do saite), veremos que a letra definitiva ganhou novos rumos.

Quanto ao “Desvivendo’, acho que Ataulfo não se interessou pela versalhada ou não teve tempo de musicá-la. Pode ser que aconteça com esses versos o mesmo episódio ocorrido com o samba-canção “Camarim”, e que a Marilia T. Barbosa veio encontrar, musicada, após a morte de Cartola. A fita estava lá guardadinha. Ele não teve tempo de entregá-la a mim. Pode-se deduzir daí que não sou um guardião confiável de meus próprios trabalhos. Vamos ao outro e-mail (ainda tem hífen?)

From: Sergio Cabral
To: Herminio Bello de Carvalho
Sent: Sunday, December 14, 2008 12:27 AM
Subject: Consulta

Meu Hermínio,
procurei no seu acervo alguma referência sobre a troca de Ataulfo Alves pelos Cinco Crioulos no show Mudando de Conversa, e não achei. Você poderia me contar como foi isso? Se tiver mais alguma coisa para dizer sobre Ataulfo, pode dizer que eu agradeço. Beijos. Sérgio.


Vou direto ao “Timoneiro” (Ed. Casa da Palavra, 2006), meu perfil biográfico traçado por Alexandre Pavan. Tento fazer uma colagem dos estilhaços de lembranças que não tivessem chegado àquele livro – e elas se fragmentam. Quando e como conheci Ataulfo? Lembro-o em seu Cadillac (era conversível? Não me lembro. Seria espaventosamente amarelo como aquele, primeiro, que Bethânia possuía? Não posso afirmar). Como o meu acervo está em São Paulo e este saite continua em construção, é provável que muita coisa ainda venha a ser descoberta.

Lembro que ele tinha um apartamentinho (os maldosos diziam que era seu abatedouro), onde degustava alguma de suas “Pastilhas”. Ficava na esquina de Augusto Severo com a rua da Lapa, quase limítrofe ao bairro da Glória. Isso é fácil de não esquecer: o projeto do edifício, a parte que dava pra Lapa, tinha a assinatura do Oscar Niemeyer e umas persianas desaprumadas que criavam uma sinuosidade esquisita. Naquele mesmo prédio o casal Andrés Segóvia-Olga Praguer Coelho possuía igualmente um apartamento. Ali também adquiri um quarto-e-sala meio duplex, pequeníssimo. Mas aí já estamos em 1990, o prédio já em decadência.

Ah, sim! Lembro muitíssimo vagamente de um roteiro datilografado do “Leva meu samba”, que seria o nome do espetáculo que levaríamos pro Teatro Santa Rosa, do Leo Jusi. (Meus Deus, como é que esse nome veio parar aqui? Confira aí, meu Sergio, por favor!). Que Ataulfo esteve em meu apartamento na rua Benjamim Constant isso posso assegurar. Mas... e a foto comprobatória de sua presença? Posso estar confundindo com uma outra em que estão o Ciro Monteiro, a Nora Ney, Clementina e Dino 7 Cordas.

Que Ataulfo gravou a melodia do “Desapetece viver” (posterior e definitivamente intitulada “Armadilhas”) num gravador caseiro, isso é meio óbvio. Que essa fita foi pras cucuias não tenho dúvidas, mas posso também aventar a hipótese de que tenha parado nos arquivos de Jacob do Bandolim, usuário de minhas fitas. Ou não. O tempo dirá. Como já expliquei, este saite está em construção. Chegamos a ensaiar alguma coisa? Acho que não. Que Ataulfo me comunicou sua desistência por motivos de saúde, lembro bem. Que faleceria em 10 de abril de 1969 isso está no livro. Poderia falsear diálogos, até aspeá-los (que memória prodigiosa possuem certas pessoas!) ou inventar dados que jamais seriam refutados – não é o que se vê por aí? Assim como Elizeth, Ataulfo faz parte da trilha sonora de minha vida.

Mas quando e como fui apresentado a Ataulfo pessoalmente, esqueça. Você foi o primeiro a proclamar essa minha disritmia cronológica. E, e além do mais, por falta de vocação ou de noções de arquivologia, fui jogando tudo naquele cestão onde misturamos lascas de nossas memórias, apontamentos sobre um fato que para nós foi importante (e que pros outros não terá o menor significado), fotos com personagens desfocados de nossa lembrança – ah, meu Sérgio! que traiçoeiro é esse ato de catalogar aleatoriamente os fatos abagunçados de nossas (e outras) vidas.

Agora mesmo, meu Sergio, fui me socorrer de teus livros para sapecar outro exemplo de minha falta de memória: meu primeiro encontro com a Divina, que você foi descobrir e conta onde, quando e como se deu na biografia que procuro agora nas minhas estantes e não encontro. Devo tê-la emprestado para alguém não muito adepto a devoluções.

Quando a gente envelhece, é essa merda que se vê. Um beijo de teu admirador

Hermínio Bello de Carvalho

P.S. – Segue a letra definitiva do “Armadilhas”, com uma coda que agreguei recentemente. Cotejando com as que foram arquivadas nos tais cadernos, alguns poderão até perguntar: qual a relevância de colocar no saite aqueles esboços? Perguntem ao Chico Buarque, quando pedi que autografasse o original do “Chão de esmeraldas” que letrei e ele musicou. Deve ter achado uma sandice minha, e mudou de assunto. Em compensação, tenho na parede o original do “Piano na Mangueira”, autografado por ele e Tom Jobim – numa versão diferente daquela que foi gravada pelos dois. Podem procurar aí no saite.

ARMADILHAS
Ataulfo Alves/Hermínio Bello de Carvalho

Eu abri toda a casa pra te esperar
enfeitei as janelas do coração
quem mandou eu me arder nesse fogo assim?
Não valeu: quase nada sobrou de mim

iludir
é uma coisa que fazes bem
humilhar e trair fazes bem melhor
Há um porém: armadilhas não são fiéis
podem até te trair e engatar teus pés

Deixa estar
que das cinzas vou renascer
te ofuscar mais que o brilho do próprio sol
o amanhã quem dispõe ao seu modo é Deus
e só Deus sabe atar, desatar seus nós

Vai te impor um castigo atroz
(quem trair vai ficar a sós)

vais gritar de perder a voz
(e virar o seu próprio algoz)

flutuar numa dor feroz
feito a casca de uma noz

e se desenrolar, após,
fio a fio que nem retrós

pelo abismo de uma foz
sem ninguém segurar-lhe o cós

vai voar, vai sumir, veloz
pelos céus como um albatroz