E lá está ele, à porta de sua casa em Jacarepaguá, em pé, dando uma entrevista cujo teor ignoramos. É que a cena foi recuperada por algum colecionador de imagens, mas à maneira do cinema mudo.
Jacob sem bandolim. Jacob sem voz. Não encontramos nenhuma imagem de Jacob tocando seu mágico bandolim.
Vamos dar nomes à essa ignomínia: descaso e incompetência.
Ainda que não sonorizada, quanto vale essa imagem de Jacob? Quanto valeria alguns minutos dele tocando sua própria obra, ou as de seu autor favorito, Pixinguinha?
Quanto vale aquele encontro “Entre Amigos”, com Jota Efegê reunido a seus comparsas na vida cultural: Carlos Drummond de Andrade, Nássara, Álvarus e, modestamente, o que ora digita estas notas. A escolha dos convidados, que se esclareça logo, foi imposição do próprio Jota.
Querem discutir política cultural, deixando de lado os problemas que ameaçam as emissoras ditas educativas e culturais? Dando nome aos bois: TV Brasil (ex-TVE) e TV Cultura. As duas estão encurraladas pelo desprezo que lhes devotam nossos dirigentes políticos.
Sim, é uma falácia – uma falácia atroz.
A TV Globo se dá ao luxo de criar um novo canal apenas para bisar e reprisar suas novelas e alguns de seus programas mais famosos, como a excelente Escolinha do Professor Raimundo. E bate recordes de audiência. Apesar do incêndio que devastou seus arquivos, muita coisa foi salva através de uma inteligente política de aplicação de recursos na preservação de seus acervos. Tudo bem, não temos a bela imagem de Pixinga ao piano e Tom Jobim na flauta, solando o “Carinhoso”. Eu tenho apenas o áudio, que gravei com um aparelhinho furreca, colado à tela do meu televisor de mínimas polegadas, quando passou o programa que registrou aquele mágico encontro, aliás narrado pela Elis Regina e Paulo Gracindo. Ao fundo, Albino Pinheiro, promotor do encontro. Grande Albino.
Ando me queixando sempre das mesmas coisas, não é? Pois vou agora ampliar meus queixumes, indo direto ao centro da questão.
Sou ligado às raízes da Escola Portátil de Música, assim como ao Instituto Jacob do Bandolim. Ministrei uma oficina naquele mágico e sonoroso colégio que agrega mais de 800 jovens alunos e tem uma penca de professores de primeira linha. Cito alguns: Mauricio Carrilho, Cristovão Bastos, Luciana Rabello, Paulo (do quarteto Maogani) e Pedro Aragão, além de minha querida Bia Paes Leme – a quem costumo me referir como um espécime equivalente à professora Cleonice Bernardinelli, a Divina Cleo, a maior autoridade em Fernando Pessoa.
Naquela oficina (“de coisas”, como a chamei) eu trabalhava ancorado em dois eixos, estranhezas e conexões. Não vou explicar a teoria desse método, simplesmente porque ele só existe na prática. Mas a emoção que despertava na garotada ser apresentada ao clarinete de Abel Ferreira, à flauta de Mestre Copinha, ao universo grandioso de Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, ao quinteto de Radamés Gnattali e à extinta Camerata Carioca, nascida em 1979, nas comemorações dos 10 anos de desaparecimento de Jacob do Bandolim. Hoje muita coisa está no YouTube ou no Google.
Desde aquela época, há quase dez anos, nunca pude mostrar um dos programas mais importantes que produzi e apresentei na ex-TVE, um “Água Viva” de 1977, com a pianeira Tia Amélia do Jaboatão, tocando ao lado do então nascente grupo de choro Os Carioquinhas. Vamos lá encontrar Mauricio Carrilho, Luciana Rabello, além de um menino de14 anos chamado Raphael Rabello (1962-1995). Era um prenúncio da Escola Portátil.
Quanto valeria esse programa? Quanto você pagaria para ser apresentado àquele momento de absoluta magia? E, pergunta principal, porque não reprisam aquele “Água Viva” (e tantos outros, que eternizaram encontros igualmente importantes?).
Gustavo Gruta, guardem esse nome que afetivamente chancelamos apenas como Gruta e que, segundo ele, de alguma forma iniciou sua carreira de diretor teatral com o espetáculo “Onomatopéia Não é Palavrão”, que está finalizando temporada no Centro Cultural Banco do Brasil. O “Onomatopéia” nasceu de um concurso de monografias instituído pela Oficina de Coisas, e que resultou na edição de um livrinho (ou opúsculo, se preferirem). Mas que prefiro mesmo chamar de resíduo cultural, porque um programa ou evento que não gere um resíduo (livro, um programa, vídeo etc.) não se eterniza. E o nosso Gruta quer fazer um evento comemorativo dos 10 anos da Escola Portátil de música, da qual é aluno de canto da professora Amélia Rabello (não por acaso, irmã de Raphael) – e dei-lhe a sugestão de procurar uma cópia daquele “Água Viva”. Juntando aquelas imagens a outras – em que surge a Camerata Carioca acompanhando Radamés, Caymmi, Elizeth –, ele teria um belo perfil de alguns professores responsáveis pela Escola.
E aí surgiram os óbices. A fita existe, está engavetada e nunca foi recuperada, apesar dos recur$os que a Petrobrás teria disponibilizado para os trabalhos de recuperação técnica do preciosíssimo acervo da ex-TVE.
Os subsídios colhidos abaixo dizem bem da situação daqueles acervos. A TVE alega que não tem máquina Quadruplex para rodar aquelas fitas, enquanto a TV Cultura – embora ameaçada por José Serra de desaparecer do mapa – parece cuidar melhor de seus acervos. A existência ou não de máquinas Quadruplex e U-matic está mais explicitada nos subsídios que agrego a esta crônica um tanto indignada.
Finalizo dando uma colaboração, porque minha natureza é propositiva: que a TVE faça um convênio com algumas das emissoras que ainda possuem Quadruplex e recupere as fitas que estão apodrecendo em seus armários, “devolvidas ao anonimato”, como gosto de enfatizar.
Para isso é necessário vontade política e competência administrativa. Conveniar com quem possui essas geringonças. Em nome da salvação da chamada Memória Nacional, essa desmiolada senhora que, volta e meia, é lembrada às esperas das eleições.
Temos aí um novo governo eleito pelo povo. Essa questão nunca foi discutida nos debates a que assisti. Cultura, matéria secundária. Memória Nacional, que bobagem!
Lembro que mandei uma carta para o Lula, tão logo ele foi eleito. Não tiraria uma virgula, se a reenviasse (1) para a presidente Dilma. Ou presidenta, como ela parece preferir . No Eça de Queiroz encontramos “generala”. Não faz muita diferença, desde que ela cumpra suas promessas.
Sergio Cabral pai e eu somos Conselheiros Master do Museu da Imagem e do Som. Faço aqui um desafio ao jornalista e pesquisador Hugo Sukman, que responde pela Fundação Roberto Marinho, patrocinadora do magnífico prédio que abrigará o novo MIS. Mesmo apelo à Rosa Maria Araújo, diretora do MIS. Igual apelo ao governador Sergio Cabral, unha-e-cuticula como o (ainda) presidente Lula. Presidente, dê uma cochichada no ouvido do ministro Franklin Martins, para que libere esses trabalhos que poderiam ser conveniados com a Globo ou com quem mais tivesse as tais Quadruplex.
Bem, acabo de cumprir meu papel nessa discussão com a pergunta renitente. Quanto vale um minuto de Pixinguinha, Jacob, Aracy de Almeida, Abel, Copinha, dos Carioquinhas, da Camerata acompanhando Radamés e Elizeth?
Não contrataram mestres-calceteiros lusitanos para recuperar nossas pedrinhas portuguesas, quase todas desniveladas em todos os cantos da cidade? Não precisamos mandar essas fitas lá para fora. Conveniar, essa a solução.
Leiam os subsídios abaixo, e tirem suas conclusões.
Em 6 de novembro de 2010 22:06, Gustavo Guenzburger (Gruta) escreveu:
Oi Hermínio,
Parece que aquela lista que você me mandou das fitas já recuperadas inclui grande parte do acervo em U-matic. A parte em Quadruplex é que está totalmente parada, esperando outro patrocínio. Muito louco este esquema cultural atual, onde para recuperar um patrimônio público, uma empresa estatal como a TVE tem que submeter um projeto a uma empresa de capital particular ou misto, para usar um dinheiro que é 100% estatal, que é a grana via lei Rouanet. Com a mudança da Lei (que está sendo negociada há 4 anos e agora deve sair), espero que isto mude, que esta via seja mais direta. Já que o dinheiro é do governo, devíamos poder pedir diretamente ao governo, de maneira pública e transparente. Um dia será assim. Vamos torcer para que nossas fitas, rolos, filmes jornais, fotos, revistas, etc não apodreçam antes disso.
Abraço,
Gruta
Do Celso Taddei, texto que por si só explica suas boas intenções :
Olá, amigos, com licença, boa noite. (Hermínio, só pra explicar minha invasão repentina em meio a seus imeios: quem lhes escreve é o Celso Taddei, que trabalha com o Gruta no projeto da EPM – aliás, é um grande prazer falar, mesmo eletronicamente, com você!) Bom, ocorre que consegui algumas informações – não muito animadoras, sinto dizer - a respeito da recuperação das nossa fitas. Até onde eu soube, existem apenas duas máquinas leitoras de quadruplex no Brasil . Uma é da Cultura e a outra é da Globo. Até o Arquivo Nacional, quando assume projetos para digitalizar filmes desse formato (como fez recentemente com o acervo da TV Tupi) busca parceria com uma dessas duas empresas. Assim, as máquinas são bastante solicitadas e costumam estar sempre ocupadas. Mas o maior problema é o custo. Como se trata de material antigo – e em geral maltratado pelo tempo e pelo armazenamento descuidado – antes de ser colocada na máquina, uma fita quadruplex precisa passar por todo um processo de limpeza e higienização. Ou seja: requer mão de obra especializada, mais algum equipamento, um ou outro material, e verba, verba e mais verba. Como eu disse, essas foram apenas as primeiras informações que levantei com gente que trabalha na área. Hà chance de não estarem corretas, da coisa ser mais simples, de existirem outras máquinas (lembrei, por exemplo, do Instituto Moreira Salles – escrevi pra Bia (Paes Leme) e estou no aguardo...) Vou continuar assuntando e entrar em contato com o setor de digitalização lá da Globo. Qualquer (boa) novidade, grito. Por enquanto, infelizmente, é isso. Não há nada perdido, mas parece que a briga vai ser boa. Fortes abraços - e vamos em frente!
Celso
Vamos a um e-meio enviado por mim para o Gruta :
Sent: Saturday, November 06, 2010 6:47 PM
Subject: Re: Fw: Carioquinhas e Tia Amélia do Jaboatão - Água Viva na TVE - 1977
Meu Gruta,
A Globo tem uma Quadruplex, e parece que a TV Cultura tb. Talvez a Record, quem sabe?
O que me deixa muito triste é essa informação enganosa que a ex TVE vem passando para a imprensa, de que seu acervo está sendo recuperado.
Claro que, se houvesse disposição política, essa situação já teria sido resolvida. Até porque, se existem recursos, por que não terceirizar essa recuperação? Quanto vale um minuto de Pixinguinha, de Tom Jobim, de Clementina, de Carlos Drummond de Andrade?
A TVE remunera mal seus funcionários, e sua grade de programação está empobrecida.O que o Ministério das Comunicações quer mais? Já falam na extinção da Tv Cultura.
Parte do acervo que consegui preservar, penso que teria melhor destino o You Tube ou a Google. Melhor do que deixar apodrecer a memória, engavetá-la.
Em qualquer país civilizado do mundo, surgiriam mecenas com grana para buscar as máquinas lá fora (elas existem, sim). Ou então fazer um convênio com quem as possui. O certo é que parte do acervo está em Umatic, e outra em Quadruplex.
Um abraço do velho
Herminio