quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Do Jequiá à Praça Tiradentes

A carta de Zé Luiz do Manguezal, um de meus ídolos, me faz olhar pela janela os canteiros de minha rua – que os recuperei, invertendo a função de latrinas a céu aberto para cercadinhos de angios lillium candidum, Lírios de Poetas, aparentado dos Lírios da Paz. Lembro da luta de Zé Luiz pela recuperação do Jequiá, ele me levando em sua canoinha (a Chico Bello) manguezal adentro, mostrando o lado perverso do homem: sucatas de geladeiras e bicicletas, garrafas de plástico, sofás e esqueletos de móveis apodrecendo as águas. Esse é o mesmo Zé Luiz do Manguezal que ainda sonha em levar cultura para seus meninos. Mal sabe ele a grande Escola, portátil e navegável, que ele representa em minha vida. Não sou eu quem me navega.

Não, meu querido Zé, o que posso fazer é isso aí: colocar você (e sua aflição e sonhos e probidade) diante dos visitantes do nosso saite. Prometo que, de alguma forma, tentarei divulgar o seu trabalho. Mas me dê as ferramentas: se o Jequiá, por exemplo, tem um saite que possa ser acessado. Comecemos por aí, certo?

(De qualquer maneira, hoje, 03 de janeiro de 2009, está no jornal a notícia de que a Escola Portátil já abriu as inscrições para o ano que ora se inicia, trovoento.)

Pessoas iluminantes

Pessoas iluminantes iguais a Zé Luiz encontrei vida afora – e uma delas foi Albino Pinheiro. Chovia, quando me tomou pelos braços e fomos caminhar nos entornos da Praça Tiradentes. Ele tinha sido empossado como no diretor do Teatro João Caetano. “Repara quanta gente”, era o comércio fechando às seis da tarde, as pessoas serpenteavam nas filas dos ônibus, esbarrando guarda-chuvas, ou se albergando nos bares, até que São Pedro resolvesse fechar as torneiras do céu. Nascia ali o projeto Seis e Meia, com fórmula simples: um artista mais popular apresentando outro menos conhecido. No caso, a atração era Quelé, Clementina de Jesus. João Bosco, seu convidado. Trinta anos se passaram, e não é coisa pouca. Se meus cabelos já eram brancos, a neve agora baixou de vez. Aos 73 anos, ainda sonho os mesmos sonhos de Zé Luiz e Albino Pinheiro. Nem a praça Tiradentes e nem eu somos os mesmos. As platéias envelheceram. Para onde estão indo os jovens de agora? E quais as diferenças entre esses de agora e aqueles de ontem – quando não havia Internet? E é pela Internet que flagro o quadro desolador: a imunda Baía de Guanabara, que recebe por dia o equivalente a um estádio do Maracanã cheio de lixo até a borda. (Não por acaso, estou relendo o “Saudades do Brasil”, de Claude Lévi-Strauss, cujo centenário foi celebrado em 28 de novembro último. Conta de sua breve visita a São Paulo em 1985, e sua frustrada intenção de visitar a casa onde morara na rua Cincinato Braga: foi retido por um brutal engarrafamento que o impossibilitou rever sua antiga morada. O tráfego já se encontrava em acelerado processo de decomposição.)

As perguntas que me faço

Meu irmão saiu para comprar um laptop pro neto, que está fazendo 10 anos. Teve o cuidado de anexar uma apostila sobre pedofilia, para que os pais da criança se precavessem com esse tipo de aliciamento eletrônico. Eu queria levar o menino a uma livraria e deixá-lo solto para escolher os títulos que quisesse. Não pude fazê-lo, e chove muitissimamente enquanto, dentro da pequena loja, vasculho as prateleiras, folheio livros e mais livros, tentando não errar muito na escolha. Mas são meio previsíveis certas escolhas. Vejo os preços, absurdos, dos livros infanto-juvenis – e aí entendo como é mais barato e confortável para as mães ligarem o aparelho imbecilizador e deixar seus filhos com aquela babá eletrônica.

A idéia da Escola Portátil de Música nasceu mais ou menos uns dois anos antes do espetáculo “O samba é minha nobreza”, em 2002. Lembro disso por causa de Aninha, filha de Luciana Rabello e do poeta Paulinho Pinheiro, e também porque o Pratinha, violão de 7 cordas, se orgulham de ter ido repetidas vezes ao Cine Odeon BR assistir àquele espetáculo. Tinham 14 ou 15 anos, por aí. A Escola Portátil ainda engatinhava, quando já fazíamos sessões extras (as chamadas “sessões pedagógicas”) do “O samba é minha nobreza” para a rede escolar do Rio de Janeiro. Ver aquela horda uniformizada invadindo as sessões me dava uma alegria danada. Eu me via com o uniformezinho da Escola 3-3 Deodoro, freqüentando os concertos da Juventude no Cine Rex e no Municipal e, à tarde indo às aulas de canto orfeônico – e ganhando o bônus de ver o próprio Villa-Lobos, na companhia de sua Mindinha e de Lorenzo Fernandes, inspecionando as classes. Lembro Fernando Pessoa (“E eu era feliz? Não sei: fui-o outrora agora”) e Ataulfo Alves (“Eu era feliz / e não sabia”).

As perguntas que me faço se resumem numa só: o que essa garotada quer ver e ouvir? Acho que foi Roquete Pinto quem disse que a função da Rádio era dar um pouco do que o ouvinte gosta e muito do que ele precisa. Diante da Internet, da profusão de lixo nas programações de rádio e TV, e de um processo de imbecilização movido pelo mercado – eu me pergunto: onde está o medidor para fazer a aferição desses vácuos a serem preenchidos? Meu pensamento volta à Oficina de Coisas, que ministrava na Escola Portátil de Música, e de alguma forma encontro algumas respostas. Olho pela janela e alguém joga uma guimba de cigarro dentro do canteiro. Ouço o gemido dos Lírios.

(Continua)