segunda-feira, 28 de março de 2011

Repaginando a vida

Já gostei de festejar meu aniversário e, sobretudo, o aniversário dos outros. Lembro os de Ismael Silva, comemorados quando ainda habitava um “já-vi-tudo” no Beco do Rio, a pouquíssimos metros da antiga Taberna da Glória. A festa se espalhava pelo corredor do nono andar onde eu morava, com total cumplicidade (e adesão) de meus vizinhos. Bons tempos aqueles! E, é claro, quando o corredor apresentava congestionamento, o povaréu debandava para onde? Para a velha e hospitaleira e gloriosa e imbatível e saudosa Taberna – a antiga, aquela onde Mário de Andrade bebia com seus amigos, e onde também eu bebi com minha amada Aracy de Almeida.

Hoje faço 76 anos, contrariando todas as minhas expectativas. Estou vivo. Melhor dizendo, tecnicamente vivo.

Os jornais desta semana comentam a doação de meu acervo ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ). Foi uma semana estafante: entrevistas, filmagens, algo que tomou proporção inusitada. Alguns chegaram a especular sobre a minha saúde. Calma, minha gente!

Resolvi fazer um texto, porque eu mesmo precisava me explicar essa quase doação de órgãos vitais à minha vida.

Desenho de Oscar Niemeyer

A doação que faço ao MIS não é produto de nenhum desânimo pessoal, mas o de ver minha casa abarrotada de material que poderia estar em circulação, tal e qual já experimentamos fazer na Escola Portátil de Música com a midiateca que tem meu nome. Sempre vociferei que a cultura é dinâmica, plural e tem que circular. Sempre lutei, sobretudo, quando trabalhei na Funarte, para que houvesse uma política de ocupação de espaços e, paralelamente, uma rigorosa política de formação de novas e jovens platéias.
Lamento, por exemplo, que o Projeto Pixinguinha (inspirado no Seis e Meia de Albino Pinheiro) tenha sido colocado fora de circulação. Com esse corte de 50 bi no orçamento, acho que a ministra Ana de Hollanda e o Antonio Grassi, presidente da Funarte, vão ter que se virar para reverter a situação. Que nossa presidenta, mais o Mantega, tenham sensibilidade para não contigenciar recursos para aquele já paupérrimo Ministério.

Outra reivindicação que faço – e, aliás, a encaminhei ao governador Sergio Cabral – seria a de ocupar as UPPs com ambulatórios culturais, aproveitando os recursos humanos formados pela já citada Escola Portátil e mais os já anunciados equipamentos de saúde e esporte. Bato pé nessa sugestão: a jovem (10 anos!) Escola tem, potencialmente, oficineiros e monitores capacitados para montarem salas de ensino de música brasileira nessas comunidades. É um erro tentar um confronto com o funk e o hip hop, manifestações já sedimentadas nessas unidades. Há que se levar um outro tipo de cardápio musical para essas unidades pacificadas, para que elas conheçam, por exemplo, as tantas jovens orquestras que animam nossas noites cariocas. Isso é, também, uma política de abertura de um mercado cada vez mais afunilado, no qual casas importantes (Canecão, Modern Sound) estão cerrando suas portas.

Acho que a nossa Secretaria de Cultura poderia reabrir o extinto Seis e Meia num horário mais lógico, e reviver, numa ação conjunta com a Secretaria de Educação, as chamadas sessões pedagógicas. Voltei ao Cine Odeon, onde havia assistido um documentário sobre lixo, para ver outro docudrama – o de Elza Soares. Éramos não mais que cinco espectadores naquele teatro lindo, que pode abrigar uma função alternativa no esvaziado corredor cultural da Cinelândia, um bairro hoje quase sem cinemas.

O carnaval de rua, cuja morte decretaram tantas vezes, não está de volta? Convoquem o Monobloco, o Cordão da Bola Preta e outros de igual estirpe para, quem sabe, sacudir os poerentos e modorrentos corredores culturais de uma cidade que possui prédios históricos que precisam promover ações dinâmicas: o Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes, o fantástico auditório da ABI, a Leitaria Cave e a fabulosa Confeitaria Colombo. Sem falar dos bares vocacionados para o encontro dessa gente bronzeada que precisa mostrar seu valor. Vamos fazer bailes públicos sob os pilotis do Ministério da Cultura com a Furiosa Portátil, por exemplo.

Dessacralizar alguns desses templos, levando a garotada a utilizá-los de forma consciente. Seria sonhar muito alto? O canal da Unirio voltou a funcionar, e tomara que tragam nossa Joyce de volta; ela com seus programas paradidáticos arrasadores. E por que não abrir esse canal para nossos jovens criadores (músicos, poetas, compositores) – assim, como deveria fazer a ex-TVE, e como fazia a TV Cultura – em véspera de sucateamento? Enfim: não sonhemos pequeno.

ÁUREA MARTINS

Ontem, 27 de março de 2011, tomei uma decisão: banir de meus textos a palavra invisibilidade, quando tiver que escrever sobre Áurea Martins. Com uma Sala Baden Powell cheíssima, nossa Cara Preta (como ela se auto denomina, jocosamente) deitou e rolou, fez o que quis com a platéia e com seus músicos. “Meu Deus, onde andava essa mulher?” – veio me dizer um jovem, fascinado com o recital cheio de provocações (ela cantando a capella, ela desfiando o “Bala com bala”, literalmente duelando com a bateria do Cassius – “mas o que é que é isso?”

Anuncio o seguinte: agora em abril gravaremos o primeiro DVD de Áurea Martins, “Depontacabeça, até sangrar”. Participações especialíssimas de Fernanda Montenegro, Chico Buarque e Francis Hime.

E abram alas para Áurea Martins, portentosa, passar com seus exuberantes 70 anos.