Hermínio Bello de Carvalho e sua coleção de LPs
Cabe uma explicação preliminar: estou sendo assediado pela imprensa para fornecer dados sobre a anunciada doação de meu acervo para o Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, presidido por Rosa Maria Araújo. Tenho uma relação muito antiga com aquela casa, criada pelo governador Carlos Lacerda na década de 1960. O político ficara fascinado com as idéias expostas num texto do crítico musical Mauricio Quadrios, que foi nomeado por Lacerda como primeiro diretor da instituição.
Fiz parte do primeiro Conselho Consultivo, constituído por Ricardo Cravo Albin, que sucedeu a Mauricio Quadros na direção do MIS. Desse Conselho participava o crítico Ari Vasconcellos, que sugeriu, então, que se gravassem depoimentos de grandes figuras de nossa cultura. A sugestão do crítico foi aceita por aquela administração, inegavelmente dinâmica, que atendia às pretensões do novo diretor, a quem a saudosa Eneida dizia sofrer de “exuberante modéstia”. E a prova era a constituição do quadro do Conselho “Superior”, em número igual ao da Academia de Letras. Não se pode criticar Ricardo Cravo Albin por sonhar grande, vejam o caso do próprio Instituto que fundou para legar seu nome à posteridade.
Conversei, este final de semana, com os responsáveis pela criação e manutenção do www.acervohbc.com.br: Luiz Boal (da produtora Olhar Brasileiro), Alexandre Pavan e Luiz Ribeiro.
Expus minha fragilidade pessoal diante dessa coisa chamada Internet, instrumento que não domino. Meu próprio saite o acesso com dificuldade. Numa reunião aqui em casa, Rachel Valença (atual vice-presidente do MIS) me contou ter acessado o saite e encontrado uns sambas de Silas de Oliveira gravados em minha casa há mais de 40 anos.
Cabe explicar que era uma época em que eu era movido pelas manias de Jacob do Bandolim, que tudo gravava, que tudo registrava para seus arquivos. Tinha metodologia, aquele meu amigo: fichas milimetricamente impressas para que rolassem em sua máquina de escrever, numa ordem tipográfica irrepreensível. Até um pentagrama imprimira nelas, para fixar determinadas melodias. Muito tempo depois descobri, em meu arquivo, uma fita de Cartola sendo acompanhado ao violão pelo próprio Jacob, que o levara à sua casa em Jacarepaguá.
Eu já tinha um matulão de tralhas que colecionava. Roteiros em profusão de um tempo em que militei na Rádio MEC (da qual fui expulso depois) e outras centenas de textos de programas na extinta TVE. Atas e mais atas de conselhos dos quais fiz parte e uma parte iconográfica considerável – até um bilhete quase desaforado de Igor Stravinsky é uma das preciosidades desse arquivo.
Ficaria difícil, para mim, conversar com jornalistas sobre o acervo, sem que tivesse um suporte que me fosse fornecido pelos idealizadores e construtores do www.acervohbc.com.
São quase 5.000 LPs, são sessenta e poucas caixas com documentos cujo conteúdo acabei esquecendo, por não manuseá-los com a curiosidade de antes. São não-sei-quantos álbuns encadernados que contam um pouco da minha trajetória, que vale muito mais pelas pessoas que acreditavam naquele jornalistazinho, repórter maquetrefe de um só paletó, que ousou andar de braços com Linda e Dircinha Baptista, foi ao casamento de Heleninha Costa com Ismael Neto, e recebeu Ismael Silva em sua casa – quanta coisa, meu Deus!
Eu gravava tudo, deixava que fotografassem à vontade, mas não posso atribuir isso a um narcisismo meu. Claro que deveria haver um naco de vaidade nessa história. Mas a dimensão de meus arquivos só apareceu há mais ou menos duas décadas, quando comecei a perder amigos essenciais: Walter Wedhausen, Cartola, Nelson Cavaquinho, Elizeth Cardoso, Aracy de Almeida, Heleninha Costa – e sobretudo uma figura icônica dentro de meu currículo cultural, Valzinho. Era um compositor quase invisível, citado apenas, e olhe lá, por Radamés Gnattali e Tom Jobim.
Redescobri-lo, deu-me a certeza de algo que se consolidou recentemente, e conto pra vocês: meu encontro com o professor Antonio Cândido. Numa confêrencia que fez no Instituto Moreira Salles, no lançamento do livro “Pio & Mário, diálogo da vida inteira”, com introdução de Gilda Mello e Souza e traços biográficos de Cândido. Na rápida palestra que fez, confessou esquivar-se dos protagonistas dos fatos que vivenciara, preferindo, segundo ele, os “personagens secundários”. Por isso, ao invés de falar sobre o grande Mário de Andrade, abordou a relação do chamado Tio Pio com o pai do autor de “Macunaíma”.
Personagens secundários? Não custou muito a cair a ficha, como se diz vulgarmente. Dois exemplos vieram claros à memória: Valzinho e Clementina de Jesus, ele personagem anônimo da música popular, área onde Mãe Quelé debutara aos 62 anos de idade.
Sempre declarei que este saite deveria funcionar como um prestador de serviços.
A doação que faço atende à essa expectativa. Esclareço mais uma coisa: uma parte de meu acervo pessoal já está destinado para a Midiateca Hermínio Bello de Carvalho, futuro cento de pesquisas da Escola Portátil de Música que, até 2012, esperamos, ganhará sede própria na rua da Carioca. Há pouco, doei mais de 100 livros para o espaço Vicente Maiolino.
Pedi aos meus irmãozinhos Luiz Boal, Alexandre Boal e Luiz Ribeiro, que me subsidiassem, e aos jornalistas que me procuram, com dados mais substanciosos, que estes, infelizmente, eu não os tenho compilados.
Essa doação coincide com a edição de “Áporo Itabirano”, que reúne minha correspondência com Carlos Drummond de Andrade, e também com os 76 anos que completarei dia 28 de março corrente. Coincide, ainda, com a gravação de um DVD de Áurea Martins, pelo Canal Brasil/Biscoito Fino, outra personagem secundária que vem à luz, e de forma brilhante, após quase meio século de carreira artística.
Também já entreguei ao produtor João Carlos Carino todos os textos do livro “Figuras Musicais”, que está sendo ilustrado pelo grande caricaturista Baptistão, de São Paulo.
Atendendo ao meu amigo Rodrigo Velloso e ao poeta-compositor-profeasor Jorge Portugal, me associei às comemorações do centenário de Assis Valente, que serão promovidas pela Secretaria de Cultura de Santo Amaro da Purificação, onde aquele compositor nasceu. Será promovido um concurso de monografias, forma de se fazer o registro e obedecer àquele bordão cansativo e enferrujado que brado há longo tempo: “cultura tem que circular”.
Passo ao relatório formulado por meus amigos, e que espero seja imediatamente colocado no blog do nosso acervo.
Grato Luiz Boal. Grato, Alexandre Pavan e Luiz Ribeiro.
P.S. – Há uns dez ou quinze anos, um querido amigo e parceiro entrou num estúdio para gravar vinhetas sobre aquilo que imaginávamos ser uma tentativa de catalogação de meu acervo. Falo de Chico Buarque de Holanda, que deu esse pontapé inicial no projeto do acervo. Lembro que João Carlos Carino, que então coordenava os trabalhos, reuniu uma equipe para filtrar a parte de áudio do arquivo. A consolidação desse trabalho deu-se, afinal. Há dois anos, graças a Boal, Pavan e Luiz Ribeiro.