Acho importante que a Ministra Ana de Hollanda tenha mexido nesse vespeiro. Espero que essa atitude estimule uma outra, a de discutir o mercado de trabalho. Feito o pessoal do cinema, também a gente da música se depara com um mercado atrofiado, cada vez mais cerrando suas portas.
Sei lá, acho que essa discussão sobre os Creative Commons tem a ver com essa outra, que me inquieta bastante: a de estar infringindo as leis dos direitos autorais.
Explico. Este AcervoHBC tem como objetivo ser um prestador de serviços, colocando em circulação um arquivo que acumulei desde os 15 anos. Ou seja, há 60 anos passados. Lembro quando estendi um caderno pro Luis Carlos Prestes autografá-lo para mim, e ele me deu um bônus de um jornal que o Partido Comunista editava. Lembro também de quando enviei uma maçaroca de livros e discos (muitos de Villa-Lobos) para Igor Stravinsky, que veio ao Brasil para reger o “Baisée de la feu”. Devolveu a encomenda, com um bilhete manuscrito meio malcriado. Será que a família do Strava (obrigado, Luiz Ribeiro) irá me processar se eu colocar isso no meu saite? Ou os possíveis descendentes de Valzinho, um dos mais criativos e modernos compositores surgidos na década de 1930, ao lado de Custódio Mesquita e Garoto – para ficarmos apenas em dois exemplos? Detesto infringir as leis. Mas confesso que leis injustas tem que ser debatidas à exaustão.
Tenho propagado por aí um bordão: “Cultura tem que circular”. O nosso saite tem esse objetivo, escarafunchar meus arquivos e colocar em circulação todo e qualquer tipo de informação.
Levei essa questão para alguns amigos meus, inclusive Antonio Adolfo, que me sugere obter autorizações dos personagens que compõem meu acervo. Mas esqueci de dizer que são por enquanto 10.000 itens, que tendem duplicar ou triplicar num futuro próximo.
Não há meio termo para essa discussão. Ou bato nos túmulo de Radamés, Valzinho, Elizeth, Luzinho Eça, Caymmi, Tom Jobim e centenas de outros quase contemporâneos meus para solicitar a seus herdeiros autorização para divulgar o que esses artistas nos legaram e que as rádios e televisões deixaram fora de circulação?
Uma atitude mais drástica seria encerrar meu saite, até que uma lei – ou um conjunto de leis – ponha ordem nesse galinheiro.
Quanto à Ana de Hollanda, hoje Ministra, dou meu apoio total por ter metido a mão nesse vespeiro. Para mudar as regras do jogo, há que enfiar as mãos no lodaçal. Águas turvas nunca foram boas conselheiras.
Que essa discussão envolva toda a sociedade de músicos e autores que fazem a nossa música, que produzem a nossa cultura. Num inevitável e sadio confronto de posições e idéias, há de surgir uma solução que contemple não apenas Creative Commons ou as atividades na Internet – porque o mundo virtual nos reserva outras surpresas, outras mídias que já estão em desenvolvimento – e para elas devemos estar preparados.
Com o universo virado de pontacabeça com essas novas tecnologias, nada mais natural que essa discussão ganhe novos olhares, sem que se perca de vista que todas essas celeumas envolvem um bem imaterial inestimável, que é a nossa cultura. Somos parte dela.
O foro para essas discussões é um Ministério próprio que é sustentado por todos nós, contribuintes, e por uma legião incalculável de artistas que geram lucros culturais e também pecuniários. E quem fornece essa matéria-prima não pode ser ignorado.
Mas sem deixar de lado uma questão fundamental: a informação tem que circular, a cultura tem que circular, e o artista precisa circular não apenas virtualmente.
É hora, pois, de discutir o mercado de trabalho.
SEM MUDAR DE CONVERSA
Claro que dou o braço a torcer. Às vezes fico olhando a vida pelo retrovisor e não reparo nas buraqueiras que o tempo vai inaugurando nas estradas que percorro. Também me vejo reprisando velhos conceitos, ignorando a ampulheta que, na minha frente, me alerta: “os tempos mudaram”; “os tempos são outros”.
Mas é bom que, pelo menos, sejamos nós mesmos diante da mudança dos ventos. Caso contrário, corremos o perigo de sermos meros passageiros, e não os condutores desse bonde que de quando em vez ameaça escapar dos seus/nossos trilhos.
Tampouco menospezo aqueles que tecem, bordam, cerzem, chuleiam e ainda fazem remendos ou pregam botões enquanto se equilibram nos trapézios e tocam flautas e harpas ao mesmo tempo. Invejo, com o mais torpe sentimento de inveja, aqueles que opinam sobre tudo e sobre todas as coisas, mesmo sem sabê-las, mas cuidando de expelir inebriantes nuvens de fumaças multicoloridas que desviam nossos olhares para a fantasia esfrangalhada, cheia de remendos que, à distancia, não percebemos. Essa tal versatilidade me encanta durante algum tempo, sim, mas evito falar de coisas que não conheço, que não me deram intimidade para tratá-las.
Todo esse preâmbulo (ou prolegômanos, se preferirem) é porque o assunto da moda, os Creative Commons, é algo que não domino. E sobre eles falei prum jornal de São Paulo, e vi que se armou uma arena – e, igual a Joyce e ao contrário de Caetano, estou fora de certas polêmicas.
Aí pego o fio da história que desejo contar.
Durante algum tempo exerci a função de oficineiro na Escola Portátil de Música. Não, não havia o caráter formal de uma aula. Oficina de Coisas foi a designação menos pretensiosa que encontrei, e sintetizava a idéia básica: informar e retrabalhar informações diversas junto aos oficinandos. Coisa simples. Levava um dos vídeos de meus programas na ex-TVE (atualmente a sucateada TV Brasil, tal e qual a TV Cultura, em processo de desmanche) e os exibia, provocando comentários.
Devo a Aracy de Almeida e Radamés Gnattali ter aprendido a dar um rumo àquelas “aulas”. Nelas, trabalhava com “estranhezas” (não confundir com exquisitices), que me serviam para conexões as mais audaciosas. Exemplo: Aracy, minha doce Araca. A voz anasalada, timbre raríssimo, dicção perfeita, voz louvada por seu companheiro de mesa na Taberna da Glória, Mário de Andrade. “Era um matusquela. Bebia pra cacete”. O depoimento está lá, empoeirado e engavetado nos arquivos da TVE, num de meus programas. E ela declamando Augusto dos Anjos, falando de sua turma no Vilarino (Antonio Maria, Vinicius, Di Cavalcanti, Fernando Lobo, Rubem Braga), e contando um episódio ocorrido entre Goethe e Schopenhauer, diante de uma vitrine cheia de badulaques numa fria madrugada de Viena. Estranhezas, para muitos que não a conheciam. E, de alguma forma, foram buscar conhecê-la.
Em primeiro lugar, por que Aracy de Almeida? O mito sobrevivia na memória coletiva graças à sua atuação como jurada no programa do Flávio Cavalcanti. Ela era escrachada e carregava no azedume em seus comentários críticos. Ficou, de Aracy, essa imagem turrona – que a Internet não pára de circular. Da cantora, ouso dizer: nada ou pouco se sabe.
De Radamés, o que posso dizer é que vivia quase de forma sedentária, aguardando que a TV Globo, que o mantinha na folha de pagamento, o escalasse para um programa. Lembro de um “Fantástico”, se não me falha a memória: ele embecado numa casaca branca acetinada, regendo uma orquestra. Nenhuma informação relevante, que eu me lembre, na legenda do “clip”. Quando, em 1979, se juntou à garotada da Camerata Carioca, graças a Joel Nascimento, houve uma espécie de ressurgimento do Maestro. Aquele senhor de cabelos brancos, à frente da meninada super talentosa, mexeu com os esquemas da época. Havia, provaram, um espaço para a música de qualidade. E o resto é história.
Radamés saindo pelo Brasil afora através do Projeto Pixinguinha, lotando os teatros, e logo repartindo a gravação de um CD com o violão poderoso de Raphael Rabello, e fazendo o que mais gostava: ir ao “Lucas” tomar um chopinho com seus mais recentes e jovens amigos e admiradores. Lembro que estava em sua casa, ele ensaiando com Raphael, quando apareceu Tom Jobim. Sentamo-nos no chão, mas fora da salinha de ensaio – onde havia um piano de armário. (Não se espantem: o piano do Maestrão não era de cauda). Dali, saímos os quatros, capitaneados por Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim para devorar umas deliciosas moelinhas num pé-sujo que ficava nas imediações da casa do Maestrão. Isso eu vi, disso participei. Não minto.Tom venerava Radamés.
AONDE QUERO CHEGAR?
À Internet, onde estamos navegando agora. Eu, você e não sei quantas pessoas mais. Há umas três décadas a discussão que nos interessava era a moralização do sistema que arrecadava e distribuía os chamados direitos autorais – assunto atualíssimo, que está em pauta. O sistema antigo era pontuado na ponta do lápis, de há muito já existia o chamado “jabá” nas rádios (a televisão já chegara, ditando novas regras), e vivíamos à sorrelfa em termos de grana.
Eram muitas as sociedades arrecadadoras, e a uma delas fui levado por meu parceiro Pixinguinha. Iniciante na música (estávamos na década de 1960), desconhecia completamente os mecanismos que regiam a arrecadação e distribuição de tais direitos. E quase nessa mesma época, estimulados por Tom Jobim, entregamos nossas obras para serem administradas por uma editora considerada, até então, idônea. Fomos posteriormente lesados, Tom inclusive.
Podemos, dentro do nosso fértil imaginário, voltar ao bairro do Estácio nas décadas de 1920/1930, quando Chico Alves e Mário Reis iam “comprar” sambas de Noel e Ismael Silva e outros bambas. Nelson Cavaquinho também vendia suas composições. Era uma prática na época. As editoras que iam surgindo acabaram por diminuir essa prática, substituindo-a por outros, nem sempre lícitas. E nós, autores, sempre nos ferrando.
Éramos, então, um bando de ingênuos. Conforme a ótica de cada um, uns utopistas e sonhadores que usavam pensar uma mudança e moralização de metodologia do sistema então vigente.
Não levávamos em conta, todos nós, que estávamos cedendo a terceiros uma parte, 1/3 da nossa criação, através de um instrumento chamado “cessão de direitos”. Descomplicando: se Mauricio Tapajós e eu entregássemos à editora uma determinada obra, ela ficava proprietária eterna de 33,33% (ou 33,34%) de nossas composições. E só poderíamos gravá-las se fossem editadas pelos grupos editoriais ligados à sociedade a que pertencíamos. No nosso caso específico, a SBACEM.
Complicado? Era, e muito.
E AÍ VEIO O ECAD
Descomplicou bastante, quando da fundação do ECAD (Escritório Central Arrecadação e Distribuição). Informatizado, o sistema tornou-se mais transparente – e nem por isso menos vulnerável. Assim como no futebol, no carnaval e outras atividades de entretenimento, ainda existem focos que persistem em nublar uma visão que parecia ganhar contornos mais nítidos.
Chiquinha Gonzaga, há uns 100 anos, liderou um movimento em defesa dos direitos autorais. Já era uma velhinha quando acendeu a fogueira da discussão. A partir daí, seu estandarte foi parar um outras mãos, chegando até nossos companheiros da Amar-Sombrás, que em 1976 resolveram enfrentar o monstro.
Contextualizemos. Quem não viveu aquela época estranharia um bando de jovens (e também jovens senhores) enfrentando, em pleno regime militar, as máfias que dominavam as áreas do direito autoral. Sempre o Aldir (Blanc) lembra nosso Mauricio Tapajós, mas não posso deixar de também citar Gonzaguinha, Vitor Martins, Gutemberg Guarabyra e, vamos ser sinceros, quase toda a classe artística que, coesa, entrou na briga.
Quando pensávamos navegar em mares menos tumultuados, vem a novidade: a Internet. Aí tudo recomplicou bastante.
INTERNET
A Internet, hoje, é um espaço de ninguém. Ou um espaço para todos. Um macro e imaginário antigo bairro do Estácio, mas online. Basta não ser uma anta cibernética como eu para você encontrar coisas inimagináveis – e tudo isso “de grátis”, como diz o bordão popular.
Por outro lado, defendem alguns amigos, ela, a Internet, tornou-se um espaço democrático – onde você pode divulgar o que quiser, desde uma composição inédita (pergunte antes ao seu parceiro se ele concorda...) até uma orgia que uma câmera indiscreta flagrou entre quatro paredes.
Confesso a vocês que, pondo meus temores (os tenho!) de lado, me compraz (que horror!) encontrar um take da Isaurinha Garcia sendo entrevistada por mim em 1977, na TVE. Chamo a isso democratizar a informação, fazendo-a circular. Direitos à parte, somos um país desmemoriado culturalmente. Já disse isso de forma um pouco mais inteligente, mas não faz diferença. Sim, sim: dizia que a tal memória nacional era tratada pelos agentes culturais como uma velhinha debilóide e esclerosada, carente de ser asilada – e falo de asilo, de exílio compulsório, de jogá-la ao lixo, como se lixo fosse.