O texto que vai abaixo eu o havia destinado ao Conselho Estadual de Cultura, mas também para atender à exigência de manutenção do Acervo HBC.
O grande perigo é que hoje, dia 02 de fevereiro (“dia de festa no mar”, segundo Caymmi, “pra saudar Yemanjá”) o meu balaio já está transbordando de novidades. Exemplos: convite para ser “hóspede”, no mês de março, do Centro de Referência de Música Carioca – carinhosa homenagem formulada por Mario Sève, que dirige a casa; e que passei a integrar, com Sérgio Cabral e Jairo Severiano, e na condição de Consultores Masters, a comissão que vai propor uma formulação de políticas para a nova sede do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em Copacabana. A indicação foi de Hugo Sukman, da Fundação Roberto Marinho. O Museu, como se sabe, é presidido por Rosa Maria Araujo, que tem Ana de Hollanda como vice. Vamos deixar esses assuntos pra depois?
Vamos, pois, ao texto destinado ao Conselho de Cultura:
São duas cabeças de penugens brancas e encaracoladas, com sonhos e utopias em consonância há mais de 40 anos. Esse par de jarras setentonas, com superfície craquelada e rugosa, tem, em comum, um enormíssimo amor pela Cidade do Rio de Janeiro, cujo Conselho estadual de Cultura integram com alguma bizarrice – já que às vezes falam pelos cotovelos, fazendo uma algaravia que seria mais adequada num parque de diversões, e primam às vezes pela aparente falta de objetividade. É claro que estou falando de mim e de meu querido Ziraldo, ele impecável nos seus coletes menos estilosos do que os do Ministro do Meio-Ambiente, eu em desarmonia total nesse quesito elegância. Volta e meia outro companheiro querido, Cacá Diegues, nos coloca a pecha de reclamões incapazes de ver coisas boas em sua volta. Somos, talvez, o oposto da antropóloga Lélia Coelho Frota que, por sinal, apresentou um magnífico texto, exaltando as boas coisas que, felizmente, ainda acontecem na área cultural. Interpretei, a princípio, como uma contestação ao quase manifesto, queixoso e contundente, trazido por Ziraldo para o nosso Conselho. A leitura do texto de Lélia desconstrói minha precipitada interpretação.
Meu querido cartunista se ressente de um plano de cultura de âmbito nacional, igual àquele que existia quando presidiu a Funarte – e pede meu testemunho e o do Maestro Edino Krieger. Somos remanescentes daquela instituição, que jorrava programas e projetos culturais que ganhavam ressonância de extremo a outro do país – sem dirigismos, respeitando as diversidades regionais, fazendo uma política de integração e, sobretudo, de circulação dos bens culturais. Mas, que paradoxo! a Funarte nascia na mesma época que sinalizava a agonia da ditadura instalada em 1964, processo que o assassinato de Vladimir Herzog fizera acelerar.
“Podíamos propor uma Ouvidoria à Secretária de Cultura Estadual Adriana Rattes”, sugere Ziraldo – já que somos apenas um conselho meramente opinativo, sem poder decisório. E volto para minha casa pensando como agiria um Ouvidor, indivíduo que, vivendo dentro do sistema, tem como ofício coletar críticas e sugestões do contribuinte e levá-las ao poder maior, cobrando-lhe soluções e providências.
Sem querer atirar um balde de água fria em teu manifesto, meu Ziraldo, aconselho: não inventemos a roda. O que estamos fartos de saber é que só um sistema harmônico, funcionando sem as habituais mazelas da política mais rastaquera, pode resolver a situação.
Vamos, por enquanto, ficar na região mais rica de monumentos patrimoniais, que é o Centro da cidade – primeiro objeto de nossa preocupação. Estão ali o Palácio da Cultura, a Escola Nacional de Belas Artes, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu de Arte Moderna, a Sala Cecília Meirelles e um raro conjunto de prédios centenários (como o Paço Imperial) e outros, mais recentes (como é o caso do CCBB) , convertidos em espaços culturais – como poderia ser o magnífico auditório da agora centenária ABI (Associação Brasileira de Imprensa), o melhor em acústica do Rio de Janeiro. Sim, existe ainda a Escola Nacional de Música, com sua original parede cega que hospeda um painel monumental – e aquela fieira de cinemas desativados.
Nosso querido Albino Pinheiro disse que tínhamos que olhar o centro da cidade – e citava especificamente a Cinelândia como um grande lago, onde se atira uma pedra, e ela vai provocando círculos concêntricos que alcançam os Arcos da Lapa até as Praças Tiradentes e a 15 de Novembro e, queira ou não, a Praça da República. As periferias do Centro da Cidade foram anavalhadas pelo progresso, mas podemos ver um bom exemplo na recuperação da Rua Lavradio e, opostamente, a extinção da Cinelândia como pólo irradiador das artes cinematográficas. E, abençoando o fim (ou o início) do centro da cidade, a Baía de Guanabara e seu monumental aterro, com o Pão de Açúcar de um lado e o Cristo Redentor do outro, formando uma das mais belas paisagens deste planeta. Sim, faltou citar o MAM e outros museus espalhados por ali.
Acontece que esse universo não tem apenas um comando, mas obedece a vários segmentos do poder: o federal, o estadual, o municipal – e quase todos amparados por um leque de burocracias infernais.
E é aí, companheiro, que vamos cair no mar das obviedades: estamos carequíssimos de saber que nossa cidade, ou qualquer cidade do mundo, só terá jeito se a gente conseguir unir esses poderes, aconselhando-os a agir integradamente, acima das vaidades e dos objetivos pessoais de cada um. Caso contrário, toda a beleza arquitetônica do Centro da Cidade deixa de ter existência ao anoitecer. É quando a cidade fica mal policiada e às escuras, sujeita a todos tipo de vandalismo – inclusive a dos pichadores com suas assinaturas caricaturais, que não podem e nem devem ser confundidos com alguns poucos e talentosos grafiteiros que fazem os muros da cidade dialogar com a população.
Antes de ontem, dia de São Sebastião, saí para uma ronda noturna pela velha Lapa, depois de celebrar o noventenário do Cordão da Bola Preta, que acaba de ganhar uma nova sede – e na Lavradio. Minha querida Lapa, onde há pouco assassinaram um jovem, numa seqüência de agressões que o noticiário nos dá conta com fartura, estava às moscas. E suja, como sempre. Fui para embasar as sugestões que faço adiante.
Nossa intenção é colaborar com a secretaria de Cultura, certo? Vamos, pois, girar a roda, mas sem a pretensão de a estarmos inventando:
– Ordenar o centro da cidade através de uma iluminação decente, que dê relevo a esses bens patrimoniais físicos. Passe ali pelo Jardim da Glória à noite, que está com uma nova e exuberante iluminação. Mas a praça ao lado está às escuras, porque os moradores de rua quebraram quase todas as velhas luminárias, deixando o lugar como espaço ideal para que possam praticar seus furtos, fumar crack e dormir à beira do monumento. Aí teria que haver uma ação integrada entre a Light e as forças de vigilância e a secretaria que cuida dos parques e jardins;
– Os serviços maravilhosos da Comlurb deveriam ser convocados para dar uma geral nessa cidade pichada e mal-cheirosa, com policiamento rotativo;
– Todo o entorno dos prédios monumentais já citados, todos eles plantados à beira da Cinelândia, deveria contar com viaturas específicas para uma ronda permanente, além das velhas duplas Cosme-e-Damião, numa ação conjugada entre o Departamento de Turismo e a Secretaria de Segurança. A Lapa (e os Arcos) ganhariam banheiros químicos e passariam por uma faxina geral, com ordenamento das desalinhadas calçadas de pedras portuguesas. Hoje elas exibem um pretume que vem das gorduras expelidas pelas carroças que atravancam as ruas, sem qualquer vigilância sanitária. Gradearam a Sala Cecília Meirelles, reação ao hotel a céu aberto dos desvalidos moradores de rua que ocuparam suas escadas-dormitório. E, ao lado, uma construção que tinha uma fachada monumental que valorizava o conjunto arquitetônico da Lapa, ameaça desabar;
– Todos esses serviços (luz, limpeza, ordenação urbana) deveriam permanentemente fazer parte da manutenção desses corredores culturais, num serviço rotativo (dia-e-noite) – e com sanções pesadas para os pichadores, que poluem o visual da cidade. (O SESC mantinha uma escola de jardinagem, destinada a jovens de rua, que depois seriam profissionalmente habilitados no cuidado dos jardins públicos. Onde estão esses serviços?).
Como vemos, meu Ziraldo, essa não é um ação que as Secretarias de Cultura possam levar adiante sozinhas.
A elas cabe, isso sim, fazer o que acabamos de constatar: a devolução do Teatro João Caetano aparelhado, o Municipal em breve abrindo suas portas.
E, a partir daí, cumpririam essas Secretarias sua função principal: tratar de uma política de ocupação desses espaços culturais (teatros, centros de cultura, lonas culturais), oferecendo programações alternativas com ingressos a baixo custo, como eram os projetos Pixinguinha e Seis e Meia (de Albino Pinheiro). Abrir esses espaços também aos sábados e domingos, permitindo à população ocupar o centro da cidade – porém limpa e iluminada e vigiada, devolvendo uma alegria que o carioca sempre teve para oferecer.
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Nos restringimos a dar sugestões para Centro da cidade! E o resto do Rio de Janeiro, meu Ziraldo? Falamos apenas de um cantinho lindo do Rio de Janeiro, mas há todo um leque de atividades de bairros, expontâneas, que necessitam apenas do apoio dos serviços públicos, e não da interferência do Estado. Espero que, daqui a pouco, nossos blocos de rua não estejam, a exemplo da Bahia, comercializando esses crachás que atendem pelo nome de abadás, que garantem a segurança dos que conseguiram adquiri-los para desfilar atrás dos trios elétricos – um direito que, antes, era garantido ao povo, e a quem o Estado só deveria garantir livre e segura circulação.
Como se vê, meu Ziraldo, só falamos de coisas óbvias, de sugestões que já foram centenas de vezes repetidas, e milhares de vezes ignoradas. Quando a professora Lélia Coelho Frota citou o biólogo Mário Moscateli, imediatamente lembrei de uma ação, essa absolutamente anônima, de um ambientalista chamado Zé Luiz do Manguezal, que opera (sem recursos oficiais) na colônia Z-10 de Pescadores do Jequiá, e que replantou milhares de mudas de mangue sapateiro. Os manguezais, sabemos, são oxigenadores de nossas águas, viveiros de peixes e caranguejos. Como diz o Zé Luiz, são “supermercados e farmácias naturais”.
Concluindo: não inventamos nenhuma roda. Sugerimos obviedades. Tomara que os poderes (federais, estaduais e municipais) não façam ouvidos cegos e olhos mudos e se dêem as mãos. Coisa que, aliás, há muito tempo não faziam.