domingo, 15 de fevereiro de 2009

Balada para Marilyn Monroe



Teu cabelo
parece que o sinto dourando minha mão.
E o teu som
(cada pessoa tem um som peculiar)
parece engastado no quadro na madeira na chave no rótulo.

Mais uma vez chegamos todos tarde :
tua mão sobre o telefone não nos alcançou;
e, no entanto, viriamos todos : o guarda civil
o lixeiro o escriturário o poeta o bancário
o proxeneta o homem-bala do circo e o corcunda quase cego
viríamos todos, absolutamente todos
e diriamos não faça isso que bicho papão não gosta de menina travessa.
Aliás, sempre chegamos tarde.
Existe um relógio sintomaticamente atrazado
regendo aquilo que seria o tal gesto salvador.
Tua mão sobre o telefone
seria a chamada geral para o socorro.

Não queria te fazer triste, norma jean baker,
mas hoje fizeste muita gente chorar :
logo tu, a quem inventaram para ser o exato sorriso
o exato encantamento a exatíssima ternura
logo tu que desnudaram tantas vezes para nossos olhos
e a quem logo cobriamos com a túnica do nosso deslumbramento.
E chorou-se.
Alguns, menos encabulados, em plena rua;
outros, para dentro (há gente que não sabe chorar direito).
Eu, por exemplo, chorei por fora e para dentro.
Ai! que doeu-me ver-se partir o vidro de tua vida
um frasco
reparem
um frasco ultramultiplicado e divididido
meticulosamente
cada fração
por toda a humanidade
que não te escrevia cartas, mas te amava
que não te conhecia a presença, e te amava
que não te dizia que te amava, mas ainda assim te amava.

Repara, não sei (e suponho mesmo que ninguem saberá)
a vida : biombo fincado duramente na laje
retalhando e colocando em postas o que foi e o que seria.
Mas, ainda assim, repara : o fato que se constata
é este : não estás.
Pior ainda : não quizeste ficar.
Ora, tudo isso é muito triste.
Entendes, percebes que te amávamos? dirás que não sabias.
Mas a pessoa a quem se ama nem sempre se tem por perto.
o jornal
o biombo
o jardim
a mesa
o esquadro
o piano
o prato o binóculo
são elementos.
Pessoas são feitas de e por e para
e habitam às vezes à uma distância de um milimetro
e esse milimetro às vezes é todo o oceano pacífico.
Não sabias, vês?
Mas sempre estivemos por perto, em vigilia.
Te policiavamos sutilmente e, no entanto,
não ouviste a (desculpe a tola e vulgar expressão) palavra doce
aquela que esplode na cara da gente quando o coração está arrebentando
e quando nenhum barbitúrico resolveria a insonia
e ainda quando nenhum corrosivo poderia dissolver ou apagar
uma coisa que na verdade não te faltava (e não suspeitavas) :
o grande amor que te ofertávamos, braços estendidos, palavras espamagadas pelo vento
pastel de queijo algodão doce toalha de fuxico
vês?
é tudo isso que doi :não termos tido vozes tão altas
nem pressentimentos tão fortes
que te pudessemos berrar :marylin, nascida norma jean baker
não faça isso, largue esse vidro, agasalhe-se de qualquer maneira,
pegue um avião, venha ouvir
o grande coro do pequeno mundo do proletariado te amando
Ah! menininha, não tiveste paciência para esperar.
A humanidade, compreende? reteve esse carinho na esperança de um dia ofertá-lo a você
embrulhado em papel ordinário e barbante grosseiro,
porém o carinho mais dadivoso :
asa de borboleta
espada de são jorge
boneca de palha
figa de prata
doce de côco feito por dona yayá da ladeira.

Namoradinha :
em vez do portão, a tela cinemascope.
Pagávemos para te ver, mas não tinhas culpa
E provavelmente deawjarias que todos os pobres do mundo tivessem acesso ao teu sorriso
e que para te namorar não pecisassem pagar entrada no cinema do bairro.
Namoradinha :
entravamos sozinhos no cinema e eras tão boa que depois sempre vinhas com a gente.
(Um dia, lembro-me agora, me surpreendi comprando
dois saquinhos de pipoca, e estava fisicamente sozinho).

Agora, justo agora,
não queriamos te deixar sozinha.
Mas justo agora, me pergunto se deveria ir ver-te e levar-te a tardia flor de papel crepon
o saquinho de pipoca o laço de fita de gorgurão acetinado
beijar-te o rosto e dizerte-as coisas lindas e ...
essas manchetes de jornais
esse nojento reporter esso gritando que tinhas a mão no telefone
que anda tentaste nos procuirar, vai ver me procuraste
a mim herminiobellodecarvalho
para pegar-te a mão e levar-te ao jardim e comprar marshmellow
entrar em cineminha vagabundo com provavelmente fita de carlitos.
não discutir kafka nem prevert nem kandinski nem truffaut nem concret music
mas a tua infância, o samba de Ismael que conta do Antonico,
as marotagens do orfanato onde te enclausuraram,
levar-te àquela curva amorosa do jardim do mam
coisas que te fariam repisar o chão, constatar a terra com os pés
surpresamente desnudos.
Bobinha, bobinha :
não soubeste esperar pelos namoradinhos que haviam marcado
um lírico encontro de esquina, buquezinho de mal-me-quer na mão
palavra ingênua suspensa na boca
e gestos bem puros, atitudes bem burguesas
chocolate com bolacha maria em barzinho de mesa de pinho e toalha esburacada
num suburbio qualquer da Leopoldina.
Namoradinhos brasileiros
javaneses
italianos
turcos
indús
ingleses
portuguêses
serias o grande afago, a desesperada alegria
e nos dariamos todos a ti
proletariamente confudidos no puro amor (e não sabias).

O que faremos agora desse carinho interrompido? Com esse amor retido inutilmente?
(o teu caminho não tem atalhos
onde pudessemos te surpreender com a nossa inquieta presença)



Balada para norma jean baker, morta por barbitúricos, assassinada pela solidão
ap
1962

(Vide antologia "Embornal", Editora Martins Fontes)