segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Áldima


Áurea Martins fotografada por Walter Firmo

Ex-Áldima: o grande ator Paulo Gracindo achou pouco sonoro o nome, e a batizou artisticamente como Áurea Martins quando, há 45 anos, ganhou o primeiro lugar na “Grande Chance”, programa famosíssimo na época, e que depois revelaria também Emilio Santiago.

Áurea Martins tem 69 anos de idade e acaba de receber o prêmio de melhor cantora do ano no Festival de Música Brasileira (ex-Tim) que agora é bancado (R$) pelo idealizador do projeto, José Mauricio Machline (ex-Prêmio Sharp).

Gostaria de dar mais detalhes da vida artística da cantora: procuro “Martins, Áurea” na Enciclopédia da Música Brasileira. Nenhum verbete.

Áurea Martins, entretanto, não é uma ex-cantora e nem está fora do mercado: graças à Olívia Hime, produzimos (Zé Maria Camiloto Rocha e eu) o disco “Até sangrar”, que lhe rendeu essa premiação.

Estranho, não? 45 anos de carreira e apenas 3 discos gravados.

A ex-Áldima batalhou durante anos e anos na noite, ao lado de Alcione, Djavan, Dafé e Emilio Santiago – num tempo em que, à saída do trabalho, a polícia interpelava Alcione, implicando com aquela caixa esquisita que, afinal, guardava o trompete com que também se defendia na batalha pelo chamado pão nosso de cada dia.

Quando o mercado de trabalho afunilou, pegou seu matulão e foi cantar numa ilha, contratada por um gringo que entendeu sua voz rouca e extensão generosa. E lá trabalhou durante alguns anos, e de quando em vez levando algum amigo. Johnny Alf, por exemplo – que chegou, nos tempos difíceis ¬– e que tempos difíceis aqueles! – a dividir apartamento com ela.

A ex-Áldima trabalha à frente da Orquestra Lunar, só de mulheres; também com o Terra Trio ou apenas o esplendido violão de Billinho. Aqui e ali podemos ouvi-la cantar aquele repertório que fazia a Divina Elizeth Cardoso sair de casa para aplaudi-la. Durante um bom tempo, dividiu com Zezé Gonzaga o repertório de Lupicinio Rodrigues num show maravilhoso que tinha apenas o piano de Zé-Maria Camiloto Rocha, também roteirista – e excelente – do espetáculo.

“Não veio?” – perguntou Fernanda Montenegro quando anunciou a ganhadora do Premio, lá no “Canecão”. “Veio sim!”, “não, não veio”, – e lá estava Áurea, num cantinho, bem Áldima. E ao levantar-se e até chegar-se ao palco, foi aplaudida freneticamente.

Lembro que, uma vez, estava na casa do mangueirense Zé Maria Monteiro, e lá estavam Jamelão e, num cantinho do apartamentão, a ex-Áldima. Uma moça tão expressiva quanto uma folha de alface desfilou duas ou três bossa-novas, e em seguida o Luis Carlos Vinhas chamou Áurea pra cantar. Jamelão me sussurrou: “Essa sabe das coisas”.

Há coisa de um mês fui ao lançamento de um livro organizado pela Prof. Gilda Mello e Souza, no Instituto Moreira Salles. A apresentação do livro foi feita pelo Prof. Antonio Candido, seu viúvo, que fez uma pequena palestra sobre o livro “Diálogo da vida inteira”, que reúne a correspondência trocada por Mário de Andrade e o fazendeiro Pio Lourenço Correia (Editora Ouro sobre Azul), tio-avô de Gilda, prima de Mário.

Levei comigo um ex-aluno da Oficina de Coisas, apresentei-o a Antonio Candido como meu mais recente parceiro. À saída, Vidal Assis comentou: “Reparou?”. Sim, eu havia reparado: ele era o espectador mais jovem na platéia e, também, o único negro.

Antonio Cândido explicou sua preferência sobre os personagens secundários, daí não centrar sua palestra em Mário de Andrade, mas em seu pai e no fazendeiro Pio, um excêntrico lingüista que falava quatro idiomas – e que foi o missivista mais presente na vida de Mário: trocaram cartas de 1917 a 1945, quando o autor de “Macunaíma” morreu. “Personagens secundários?” Logo pensei em Aldima, Clementina, tanta gente.

Quando fui assistir ao Recital Bibi Ferreira/Piaf levei comigo a ex-Áldima. Teatro lotado, apenas duas negras na platéia. Telefonei para a Prof. Lélia Coelho Frota, antropóloga e amiga querida, e contei o ocorrido. “O que isso quer dizer?”.

Ainda não sei dizer o que isso significa, mas a questão não deixa de ficar rondando meus pensamentos.

Lembro de alguns preconceitos vigentes na época em que trabalhei na ex-TVE (o ex está sempre presente em minha vida), hoje TV Brasil – que não disse ainda ao que veio. Um deles era sobre a faixa etária. Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina, Zé Kéti – que negaiada ... e véia, hein? parecia ouvir nos olhos censores, que além da cor também contabilizavam as rugas.

Nada ficava muito explícito naquela censura velada. Quando levei Áurea Martins para cantar no programa em homenagem ao Alcir Pires Vermelho (que faleceria pouco tempo depois), esse olhar preconceituoso não havia no andar de baixo, onde os câmeras e os operadores de som e luz eram, alguns deles, também negros. A estranheza vinha sempre do andar de cima. Talvez, quem sabe?, “sua imagem não seja muito televisiva”.

Não quero me alongar muito sobre isso, atento às observações repassadas por meu guru Alexandre Pavan: seja conciso. Mas não consigo me expressar em apenas 140 caracteres, como ordenam as regras do Twitter.

Compro um monte de revistas e jornais, semanalmente. Vejo bastante televisão, e as imbecilidades que são colocadas no ar.

“É uma das 3 maiores cantoras do Brasil!”, escreve Nei Lopes. Faltou informar isso aos editores dos segundos cadernos, a alguns críticos musicais e aos produtores de rádio e TV.

Se o Faustão (ex-Fausto Silva), se dispusesse ouvir ex-Áldima, talvez até se dispusesse a homenageá-la num daqueles quadros onde só entram protagonistas, raramente os personagens secundários de que fala Mestre Antonio Candido. Tenho a certeza que, num telão, ouviríamos o Emilio, a Alcione, o Francis Hime reverberando aquilo que sempre ouvimos de Elizeth Cardoso, Jamelão e Zezé Gonzaga.

E a ex-Áldima entraria em cena com aquela boina torta na cabeça, meio Betty Carter, meio que vindo da feira, sem lantejoulas ou badulaques coruscantes – a bordo apenas de seu talento, de sua voz poderosa, espargindo a magia própria das deusas, deusa ebanácea que às vezes chega cuspindo marimbondos e sacudindo as argolas até nos jogar em sua arena, onde se deixa arder entre canções.